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Vagas e vogas da crítica
Após a hegemonia de teorias como estruturalismo
e marxismo, ciências humanas parecem entrar num período
de transição
Daí meu desconforto diante
dos que continuam a pensar
a história a partir
de um único ponto de vista
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JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA
João Cruz Costa, que ensinou na USP nos anos
1950 e 1960 a fazer filosofia pensando no Brasil,
sempre nos alertava sobre as periódicas levas de pensamento que recebíamos de fora, verdadeiros furacões ameaçando afogar as sementes que
estavam sendo cultivadas.
Fiel a seu ensino, observo
que, desde os meados do século
passado, filosofia e ciências humanas sofreram o rolo compressor do estruturalismo, da
filosofia analítica, do marxismo
althusseriano e gramciano, do
habermasianismo. Agora parece que entramos num período
de transição, pois não temos
hoje paradigmas dominantes.
Sobraram os estudos particulares sem grandes aspirações
metodológicas e o esforço dos
partidários da Escola de Frankfurt, vaga tendência para a qual
todos os gatos são pardos, desde que vistos da óptica da
"emancipação". À margem se
nota ainda a influência de "letterati", gente de formação em
literatura que se projeta no
mundo da cultura, principalmente nos interstícios dos
meios de comunicação.
Mas não é apenas no nível da
recepção das idéias que isso
acontece, a história de sua produção também apresenta momentos importantes de solução de continuidade.
De repente, uma idéia, que
permanecera à margem do
pensamento dominante vem
para o centro e satura todo o
ambiente. Exemplo clássico foi
a aceitação do heliocentrismo.
Copérnico, no seu livro de
1543, mostrou que tomar o sol
como o centro de nosso universo simplificava enormemente o
cálculo dos movimentos dos
astros, mas não afirmou a verdade dessa hipótese.
O homem no universo
Mas, quando Galileu introduziu o uso da luneta na observação do céu, isso em 1606, rapidamente os melhores pensadores do século se converteram
ao heliocentrismo. É todo um
sistema de idéias que desaba,
alterando a posição dos seres
humanos no universo.
Mas não foi apenas a interpretação de novos fatos que
provocou essa comoção, pois só
mais tarde é que se armou uma
teoria óptica assegurando que a
imagem de um satélite de Júpiter não era um efeito produzido
pela própria luneta.
É toda uma imagem do mundo que se altera.
O caso do marxismo é o inverso, pois ele desaparece como num passe se mágica. No
fim do século 19 era aceito por
líderes do movimento operário,
embora sempre estivesse em
competição com o anarquismo.
Legitima a Revolução Russa de
1917 e, sob a forma de marxismo-leninismo, passa a dominar
os movimentos de esquerda.
Nos anos 1950, Jean-Paul
Sartre o coloca como o horizonte intransponível da filosofia
contemporânea, e Maurice
Merleau-Ponty, filósofo cauteloso, não tem dúvidas ao afirmar que o marxismo não era
apenas uma filosofia da história, mas a própria filosofia da
história, sendo que renunciar a
ele seria cavar o túmulo da razão na história.
Mas nos anos 1980 o marxismo se desmilingüe. Algumas
ilhas sobraram no oceano: continua sendo cultivado por alguns historiadores e alguns literatos, mas basta examinar a
lista das publicações a partir
dessa data para se convencer de
que ele ficou à margem das idéias dominantes.
Como explicar esse fenômeno? Obviamente o desmoronamento da União Soviética e das
democracias populares o desmoralizou como ideologia legitimando a "ditadura do proletariado", isto é, a fusão do Estado com o partido único, assim
como evidenciou a incapacidade de uma economia centralizada para satisfazer as demandas de um capital globalizado
tendo por base a tecnologia da
informação. Não é à toa que a
China pratica hoje um "socialismo de mercado".
Por certo existem outras causas, mas vou me ater apenas ao
abandono do princípio que sustentou a afirmação dos dois filósofos franceses: o marxismo
confere racionalidade à história porque a emoldura numa
única trama.
Em termos grosseiros: o desenvolvimento das forças produtivas teria quebrado o comunismo primitivo, instalado a luta de classes que resultaria na
revolução proletária que, por
sua vez, emanciparia os seres
humanos de suas dilacerações e
alienações.
É como se o reino dos fins,
que para Kant era o princípio
regulador da moral, se encarnasse na própria história, se
transformasse num fato revolucionário.
Obviamente, estou traçando
uma caricatura, pois nem Sartre nem Merleau-Ponty pensaram em termos tão crus. E
Marx, como ele mesmo declarava, nunca foi marxista.
Mas a caricatura serve para
sublinhar a crença de que as
ações humanas poderiam ser
enquadradas numa racionalidade dominante, idéia que Sartre continuou a procurar, na
"Crítica da Razão Dialética", e
da qual Merleau-Ponty começou a duvidar em seus últimos
escritos.
Não é possível, dirá ele então,
encontrar uma perspectiva capaz de ter uma visão de sobrevôo sobre o mundo e sobre a
história. Nem mesmo como
princípio regulador, porquanto, sendo o pensamento sempre situado, nunca haverá uma
situação que se situe a si mesma. Marx imaginou ser capaz
de sair desse impasse, tentando
mostrar que a lógica, a racionalidade perversa, do próprio sistema capitalista criaria um
ponto de vista teórico e prático,
uma crise cujos pólos possuiriam a virtude de encarnar a diferença entre o tudo e o nada.
Com a vitória do tudo, isto é,
do proletariado, a totalização
da história estaria completa, ou
melhor, terminando a pré-história da humanidade e começando a história do ser humano
propriamente dita. Mas, quanto mais Marx explicitava a lógica do capital, aprofundava sua
crítica da economia política,
tanto mais se distanciava desse
esquema da totalidade. Nunca
conseguiu provar a necessidade racional da crise.
Sob esse aspecto, o próprio
Marx teria beirado a eclosão do
novo paradigma. Em vez da crise, passam a ter importância as
crises, os momentos de reestruturação do capitalismo e a
oportunidade de domesticar os
mercados. Não é o que hoje está
em pauta?
Daí meu desconforto diante
daqueles que continuam a pensar a história a partir de um
único ponto de vista, aquele da
emancipação, por exemplo.
Ou ainda aqueles que pensam o socialismo tendo programa definido, quando o próprio
Marx ensinou que "comunismo" é uma palavra equívoca,
vale dizer, que indica apenas
um movimento contrário ao
capital, aquelas mudanças permitidas no presente.
Ser socialista passa a significar, então, o esforço de superar
a crise do momento, do ponto
de vista da liberdade e da justiça social efetivas.
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito
da USP e coordenador da área de filosofia do
Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Escreve na seção "Autores", do Mais! .
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