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REGIME MILITAR
Em depoimento inédito, ex-líder estudantil conta como foi vítima da cooperação Brasil-Argentina na repressão
Argentino relata tortura em praia do Rio
MARCELO STAROBINAS
DA REDAÇÃO
Na década de 70, os diplomatas americanos na América do
Sul relatavam com detalhes a
Washington os casos de desaparecimentos, tortura e violações de direitos humanos pelos
regimes militares da região.
Uma história em particular,
porém, saltou aos olhos do cônsul dos EUA no Rio de Janeiro:
refugiado no Brasil, o líder estudantil argentino Guillermo
Torres Castaños, 20, havia sido
sequestrado em Copacabana,
em 24 de julho de 1977. Segundo ele, agentes da repressão da
Argentina e do Brasil o haviam
torturado juntos na cidade.
"Este é o primeiro indício que
temos de que as polícias federais argentina e brasileira estariam investigando cidadãos argentinos no Brasil e possivelmente cooperando para a sua
repatriação", afirmou o cônsul,
num dos 4.677 documentos sobre a ditadura argentina (1976-83) abertos ao público neste
mês pelo Departamento de Estado americano.
O caso confirmava as informações de que dispunha o então secretário de Estado dos
EUA, Henry Kissinger. Em
agosto de 1976, segundo documento publicado pela Folha,
Kissinger diz saber de um acordo secreto entre Brasil e Argentina para "caçar e eliminar"
conjuntamente militantes de
esquerda nos dois países.
A ação que atingiu Castaños
era possivelmente resultado da
Operação Condor -projeto de
cooperação para o combate a
subversivos do qual participavam Brasil, Argentina, Uruguai,
Chile, Bolívia e Paraguai.
Em entrevista por telefone, o
argentino contou à Folha como
foi sequestrado e torturado e,
num golpe de sorte, conseguiu
escapar dos policiais brasileiros
e argentinos no Rio.
O sequestro em Copacabana
Fui sequestrado numa rua paralela à praia por agentes brasileiros. Estava diante de um cinema quando me agarraram
por trás.
Jogaram-me dentro de um
carro, debaixo do banco. Levaram-me a uma praia. De repente, chegaram dois militares argentinos. Foram eles que começaram a me torturar. Conectaram uma agulha elétrica na bateria do carro e começaram a
dar choques e a bater em mim.
Fui torturado ali na praia, a uns
40 minutos de Copacabana.
Os argentinos mostravam um
organograma com nomes e
queriam saber quem estava no
Brasil. Eu desconhecia aquilo
tudo. A polícia brasileira queria
saber qual relação tinham os argentinos com os brasileiros,
quem me dava alojamento no
Rio e como chegara ao Brasil.
Brasil x Argentina
Estive preso por quase seis
dias. Levaram-me a um subsolo
com celas de um metro quadrado. Os que mais me batiam
eram os argentinos, que dirigiam os interrogatórios. Eles vinham àquele lugar com total liberdade, interrogavam-me e
colocavam-me de volta na cela.
Faziam o que queriam, como se
estivessem em casa.
Os brasileiros e os argentinos
tinham interesses distintos. Isso
acabou me salvando. Os argentinos queriam me levar logo para a Argentina. Já os brasileiros
queriam que informações sobre
as relações entre os refugiados
argentinos e as organizações
brasileiras. Por isso, tinham interesse em manter-me no Rio.
Os argentinos pediam aos
brasileiros que cooperassem.
Os brasileiros respondiam que
estavam cooperando e que tinham de entender que eles tinham outras necessidades. Isso
tudo na discussão sobre o que
fariam comigo, na minha frente. A cooperação era aberta.
Os "passeios" no calçadão
Eles me levavam para dar voltas no Rio. Amarravam uma
madeira ao redor da minha perna, que me impedia de correr
para fugir. Levavam-me de carro e me deixavam na praia de
Copacabana. Faziam-me caminhar pelo calçadão de ponta a
ponta, no meio das pessoas. Diziam que os outros argentinos
se aproximariam para falar comigo se me vissem. Assim, eles
os prenderiam. Dois agentes
brasileiros me seguiam.
Tiravam-me todos os dias da
prisão para caminhar, de manhã e à tarde, sempre em Copacabana.
Tinha medo porque minha
mulher e meu filho de três meses estavam na cidade. Se ela me
visse, viria falar comigo. Era um
sofrimento terrível.
A fuga no fusca
Numa das vezes em que me
levaram a Copacabana, estacionaram o carro, um fusca. Havia
dois policiais brasileiros. Um
deles foi comprar cigarros, enquanto o outro me tirava do
carro. Àquela altura, já estávamos amigos, pois conversávamos muito.
Reclamei que a madeira estava machucando minha perna.
Pedi que afrouxasse um pouco.
Quando ele afrouxou, dei um
chute e um empurrão. Tomei o
volante e fugi com o carro.
Minha mulher me recebeu no
apartamento onde estava. Contamos à ONU o que havia ocorrido e vieram nos ver. Devo minha vida à ONU. Tiraram-nos
do Brasil em 48 horas. Para
mim era uma questão de vida
ou morte.
Reencontro com o sequestrador
Tive de ir à polícia para obter
um atestado médico para poder
deixar o Brasil. No elevador do
prédio da polícia, deparei-me
com um dos sequestradores. Eu
estava com Guy Prim, encarregado da ONU no Rio. Não fiz
nada. Depois que ele saiu do
elevador, contei a Prim quem
ele era. Fui aconselhado a não
dizer nada.
Foi um golpe tremendo reencontrar o sequestrador ali. Era a
prova de que faziam aquilo legalmente. A estrutura da polícia
brasileira estava oficialmente
colaborando. Havia um projeto
conjunto.
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