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A EUROPA DOS 25
Cosmopolitas do Leste Europeu, que enfrentaram o domínio soviético, devem rejeitar tecnocracia de Bruxelas
Intelectuais da "nova Europa" reagem
NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA
Quando, em 1989, caiu o Muro
de Berlim, os países que tinham
passado as décadas anteriores do
lado errado daquilo que Churchill
batizara de Cortina de Ferro comemoraram não apenas sua libertação, como também seu retorno à Europa.
O processo que culminou com o
fim do bloco soviético havia se
iniciado em meados daquele ano
com a abertura da fronteira entre
a Áustria e a Hungria. Através
dessa brecha, veranistas da Alemanha Oriental tentaram chegar
à Alemanha Ocidental, desestabilizando com sua ação todos os regimes da região.
Para os habitantes dos países
comunistas, a Europa era uma palavra mágica, que resumia em si
liberdade e opulência. De fato,
nunca a Europa Ocidental estivera tão rica, e quase meio século de
paz após a Segunda Guerra parecia fazer da metade afortunada do
continente a utopia realizada na
qual vigorava uma democracia
perfeita. Ingressar nesse mundo
mágico o quanto antes era, para
húngaros, tchecos, poloneses etc.,
a maneira ideal de se livrarem do
legado comunista de opressão e
miséria.
A Europa Ocidental, no entanto, aceitou de imediato um único
país: a Alemanha Oriental. Os outros primos pobres foram deixados na fila de espera, obrigados a
cumprir inumeráveis exigências
burocráticas antes de serem aceitos no clube.
No entretempo, os candidatos
foram pondo suas respectivas casas em ordem enquanto o clube,
com suas economias estagnadas,
desemprego crescente e excesso
de regulamentação, começou a
perder algo de seu encanto.
Durante os dois últimos decênios do sistema soviético, a oposição aos regimes se aglutinou ao
redor de dois pólos: um deles, social-democrata e cosmopolita, e o
outro, nacionalista e populista.
Eram os intelectuais do primeiro
desses pólos, gente como o tcheco
Vaclav Havel, o polonês Adam
Michnik, os húngaros Árpád
Göncz e György Konrád, que,
considerando-se europeus no
sentido amplo, aguardavam a
unificação continental com mais
entusiasmo.
Nos anos 90, os que pertenciam
ao segundo grupo, ressuscitando
preocupações do entreguerras,
eram geralmente vistos como
nostálgicos e anacrônicos, mas
não deixavam de exercer certa
atração, pois, em países cuja autonomia fora longamente confiscada por uma superpotência, o
exercício da soberania nacional se
tornara uma experiência da qual a
maioria da população não abriria
mão facilmente.
A primeira decepção dos intelectuais cosmopolitas com sua
Europa idealizada resultou da crise balcânica, seja porque ela eclodiu em parte devido a desentendimentos entre a Alemanha, a França e o Reino Unido, seja porque,
conforme as hostilidades se agravavam, essas nações reagiram
com uma mescla de impotência e
indiferença. Os países recém-saídos da tutela russa puderam logo
comprovar que a estabilidade da
região dependia, em última instância, da intervenção norte-americana.
Concomitantemente também
se revelou que não havia uma só
concepção do que deveria ser a
Europa, mas pelo menos duas. A
primeira, promovida sobretudo
pela dupla franco-germânica, era
a de uma federação centralizada
econômica e politicamente, administrada por uma burocracia
transnacional não eleita e dirigida
pelo par em questão.
A segunda, mais de acordo com
as preferências dos países periféricos da Escandinávia, do Mediterrâneo, além do Reino Unido e
da Irlanda, correspondia a uma
associação folgada de nações independentes cuja meta era antes a
de consolidar uma zona de livre
comércio.
Muitos dos intelectuais cosmopolitas e pró-europeus entreouviram na primeira concepção ecos
desagradáveis de seu próprio passado recente, da centralização extrema que vigorava na zona sujeita ao Pacto de Varsóvia.
Ser plenamente europeu para
esse grupo correspondia à livre
circulação de idéias e à consolidação das liberdades há pouco adquiridas, não à substituição de
um conjunto de entraves burocráticos por outro.
A segunda crise, talvez decisiva,
ocorreu nos meses de negociações onusianas que precederam a
invasão do Iraque. Nesse período
conturbado comprovou-se que
franceses e alemães buscavam,
para consolidar seu modelo europeu, valer-se do cimento ideológico do antiamericanismo.
Acontece que os países do leste
do continente, que, no decorrer
de toda a Guerra Fria, esperaram
a vitória dos EUA, não estavam
preparados para antagonizar a
superpotência cujo triunfo havia
sido sua libertação. E, como a
aliança de franceses e alemães
com os russos tampouco os ajudou a se sentirem mais à vontade,
eles acabaram, para a irritação de
Chirac e Schröder, apoiando os
norte-americanos e formando o
núcleo do que Donald Rumsfeld
chamou de Nova Europa.
A demora imposta pelos europeus ocidentais a seus primos pobres do leste converteu o que poderia ter sido, digamos, dez anos
atrás um grande momento de cicatrização dos traumas do século
20 num anticlímax.
O entusiasmo dos setores mais
progressistas, da intelectualidade
mais aberta e democrática dos antigos países comunistas, consumiu-se em 15 anos desnecessários
de espera.
Mesmo em termos puramente
econômicos, os novos cidadãos
da União Européia serão, por algum tempo, tratados como de segunda classe, uma vez que é apenas no Reino Unido e na Irlanda
que terão imediatamente o direito
a trabalhar.
Eles ingressam ademais numa
união que, depois da Segunda
Guerra, nunca esteve tão dividida.
Cada partido tentará conseguir
seu apoio mediante uma combinação de incentivos e punições.
Se o futuro é incerto, uma coisa
é certa: intelectuais que não cederam aos hierarcas do Kremlin não
se dobrarão sem resistência aos
tecnocratas de Bruxelas.
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