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RECONSTRUÇÃO
Cerca de 20 meses depois da queda do Taleban, país ainda enfrenta graves problemas; reestruturação patina
Afeganistão é mau presságio para Iraque
MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO
Em uma época em que a reconstrução do Iraque preocupa a comunidade internacional, os EUA
não deverão olhar para o Afeganistão em busca inspiração: embora tenha melhorado em relação
ao que era na época do Taleban, o
país permanece pobre e controlado por chefes locais ou regionais.
Segundo analistas ouvidos pela
Folha, há inúmeras razões para o
Afeganistão continuar em situação precária. Contudo a principal
é uma diferença crucial nos objetivos dos dois processos de reconstrução. Por conta de interesses geopolíticos, o Iraque vive sob
o controle de uma força de ocupação, enquanto o Afeganistão possui um governo próprio -apoiado por forças internacionais.
"Os EUA, que, na prática, comandam os dois processos, jamais tiveram as mesmas intenções no Afeganistão que têm hoje
no Iraque. Quem disse que Washington tinha razões geopolíticas
maiores para controlar o Afeganistão errou totalmente. Os militares americanos ainda se encontram em território afegão somente para procurar terroristas, que
atuam na região", analisou Olivier
Roy, especialista em Afeganistão
do Centro de Estudos e de Pesquisas Internacionais (Paris).
"Assim, eles não interagem com
a população, o que atenua o risco
de morte entre os estrangeiros.
No Iraque, além de existir um nacionalismo mais agudo que no
Afeganistão, as forças da coalizão
controlada pelos EUA estão totalmente misturadas com a população, o que constitui um risco bem
mais elevado", acrescentou.
Com efeito, desde a queda do
regime do Taleban, no final de
2001, a resistência afegã tem sido
bem mais fraca do a que existe no
território iraquiano. Ademais, as
forças estrangeiras que estão no
Afeganistão não chegam a 20 mil
homens, enquanto só os EUA têm
cerca de 150 mil no Iraque.
Como ressaltou Roy, outro fator
que abranda a oposição local às
forças estrangeiras é a ausência de
um forte sentimento nacionalista
afegão "porque a sociedade afegã
sempre foi mais descentralizada".
"Trata-se de um país que, tradicionalmente, foi comandado por
chefes locais ou regionais. Assim,
não há um verdadeiro movimento afegão unido", apontou Roy.
Todavia essa aparente vantagem para as forças internacionais
se transformou em um dos maiores obstáculos para a estabilização
política do país, visto que enfraquece o governo central, liderado
pelo presidente Hamid Karzai.
"Os EUA fortaleceram os chefes
de guerra afegãos porque precisavam deles para lutar contra o Taleban e continuam a apoiar alguns comandantes militares regionais porque precisam da ajuda
deles para caçar o que restou do
Taleban e da Al Qaeda [rede terrorista de Osama bin Laden].
Washington continua fornecendo armas a grupos locais, buscando chegar mais perto dos terroristas", explicou Marina Ottaway, do
Carnegie Endowment for International Peace (EUA).
"Assim, os EUA minam o governo central afegão. Mas não
acredito que isso seja feito deliberadamente para buscar manter a
estabilidade. Creio que Washington não queira investir os recursos necessários para enfrentar os
chefes de guerra, pois seria necessária uma forte presença militar
americana ou internacional no
país. Isso seria muito caro financeira e politicamente no momento atual. Afinal, há a reconstrução
do Iraque em curso", completou.
A situação atual põe em risco o
processo de democratização do
Afeganistão. A instabilidade é
crescente no país, sobretudo na
região situada perto da fronteira
com o Paquistão, e já ameaça a
realização das eleições, que deverão ocorrer em meados de 2004.
Manutenção da paz
A Força Internacional de Assistência de Segurança (Isaf), uma
missão de manutenção da paz
apoiada pela ONU, só opera em
Cabul -apesar dos constantes
apelos feitos por Karzai. Este pede
um maior contingente militar e a
ampliação do mandato da Isaf,
para permitir que o restante do
território afegão seja efetivamente
controlado por seu governo.
Os EUA se dizem favoráveis à
expansão da missão, porém afirmam que outros Estados devem
fornecer soldados à força. Enquanto isso, perto da fronteira
com o Irã, Ismail Khan "governa"
sem levar muito em consideração
a administração central. O mesmo ocorre com Abdul Rashid
Dostum na região vizinha ao Uzbequistão. Embora, oficialmente,
afirmem respeitar a autoridade de
Karzai, os dois chefes de guerra
mantêm enorme força local.
"Por conta da receita que obtém
graças ao comércio, legal ou ilegal, com o Irã, Khan tem um "orçamento" superior ao do governo
central", apontou Roy. Assim, o
moderado Karzai é visto como
"prefeito de Cabul", pois os cerca
de 5.000 soldados do Exército afegão não são capazes de enfrentar
as forças dos chefes de guerra, que
oscilam entre 100 mil e 200 mil
homens, segundo especialistas.
Outro fator de desestabilização
no país é o crescente cultivo da
papoula, que dá origem à heroína.
Os afegãos produziram 4.500 toneladas de papoula em 1999, mas
sua produção caiu para 185 toneladas em 2001, após uma onda de
repressão às drogas liderada pelo
Taleban. Todavia, de acordo com
estimativas da ONU, o país deverá
produzir 3.400 toneladas neste
ano, o que equivale a 75% da produção mundial. "As drogas voltaram a ter papel crucial na economia do país", avaliou Ottaway.
Contudo, conforme salientou o
brasileiro Manoel de Almeida e
Silva, diretor de comunicação da
Missão de Assistência da ONU no
Afeganistão, a vida da população
local já melhorou bastante desde
a queda do Taleban. "Já conseguimos realizar campanhas de vacinação, atingindo 6 milhões de
crianças, e poderemos erradicar a
poliomielite do país em 2004."
"Além disso, as afegãs têm mais
liberdade, as meninas frequentam escolas e lugares públicos, e a
colheita de trigo deste ano será a
maior dos últimos 25 anos graças
à recuperação dos canais de irrigação que já fizemos. Também
abrimos postos de atendimento
para mulheres, que tinham grande dificuldade para obter atendimento médico sob o Taleban."
De fato, seria irresponsável dizer que a atual situação do Afeganistão não é melhor que a existente há alguns anos. Todavia, se os
doadores de fundos tivessem
mantido suas promessas, as forças internacionais e as ONGs que
atuam no país já poderiam ter
realizado mais avanços.
Só os EUA prometeram, no início de 2002, doar US$ 3,3 bilhões
em cinco anos, porém, segundo o
diário "The New York Times", somente cerca de US$ 300 milhões
foram gastos com a reconstrução
do Afeganistão até agora. Washington deverá desbloquear mais
US$ 1 bilhão em breve.
Outros países ou blocos, como o
Japão e a União Européia, também ainda não cumpriram suas
promessas. Karzai, que pleiteava
US$ 10 bilhões em cinco anos, obteve a promessa de poder contar
com US$ 4,5 bilhões. O problema
é que boa parte desse montante
ainda não chegou ou foi gasta em
programas humanitários, não na
reconstrução do Afeganistão.
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