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MISSÃO NO CARIBE
Presença de tropas de paz não muda cenário de ausência de segurança, recrudescimento da violência e pobreza
Após quatro meses, Haiti segue sem Estado
RICARDO BONALUME NETO
ENVIADO ESPECIAL AO HAITI
A cena era insólita e parecia indicar que estava havendo progresso no policiamento do Haiti:
havia de fato policiais controlando o caótico trânsito em torno de
uma rotatória próxima ao aeroporto da capital, Porto Príncipe.
Mas a ilusão logo se desfez. Era
um trabalho pontual.
Os policiais estavam ali apenas
para facilitar a passagem de um
comboio de carros oficiais em alta
velocidade precedido de batedores em motocicletas. Mal passaram as autoridades, os policiais
foram embora, e os haitianos comuns ficam entregues ao caos de
sempre, com a buzina servindo de
instrumento básico para facilitar
a ida do ponto A ao ponto B.
A cena simboliza bem a ausência do Estado no cotidiano haitiano. Quatro meses depois que tropas de paz brasileiras chegaram
ao país, o Haiti continua com os
mesmos problemas -piorados,
em alguns casos.
A violência recrudesceu na última semana. Houve sete assassinatos ligados a protestos de grupos leais a Jean-Bertrand Aristide,
presidente deposto em fevereiro e
que está exilado na África do Sul.
Há ainda as centenas de mortes
causadas por desastres naturais,
como as inundações provocadas
pela tempestade tropical Jeanne.
E há os problemas antigos, como
o desemprego crônico e a falta de
eletricidade a maior parte do dia.
Além disso, as ruas continuam repletas de lixo -apesar de alguma
melhora em alguns pontos da capital. Já há mais caminhões recolhendo o lixo. E só.
Marie Yolenne Romelus, 23, desempregada, grávida, é um bom
exemplo da situação da população pobre haitiana. Nem ela, nem
seus dois filhos tinham ainda comido por volta da hora do almoço
e não tinham previsão de quando
(ou se) teriam comida naquele
dia. Seu marido é carpinteiro e só
trabalha esporadicamente.
Marie Yolenne e sua família vivem em uma casa de apenas um
cômodo que serve de dormitório
e cozinha. Não há banheiro. É a típica casa haitiana de blocos de cimento -nisso a família está em
condição bem melhor que os milhares de favelados que moram
em barracos de madeira com jornal forrando as paredes e com esgoto correndo entre eles.
Ela também tem uma vantagem: vive perto de um poço de
onde crianças tiram água. E crianças não faltam no Haiti. A média
mundial de fecundidade é de 2,8
filhos por mulher; no Haiti a taxa
é de 4,7 crianças por mulher.
O pintor Jean-Claude Jean resolveu explorar um filão diferente: na falta de turistas normais,
que fugiram do Haiti, ele procura
vender para os militares da ONU.
Montou seu "ateliê" na frente de
um dos aquartelamentos de soldados brasileiros, no prédio de
uma universidade que ainda não
voltou a funcionar.
Ele colocou à venda de manhã
um quadro com as bandeiras do
Brasil e Haiti e mostrando um soldado. Pela hora do almoço já tinha vendido. "Posso fazer um para você em 30 minutos", diz.
Os soldados têm pouco contato
com a população fora do seu trabalho. Não é recomendável sair só
pelas ruas, especialmente às noite
e há poucos locais para se divertir.
Os brasileiros já fizeram vários
projetos chamados pela ONU de
"impacto rápido". Fizeram a limpeza de um canal de escoamento
de águas de chuva, reurbanizaram uma praça e reformaram um
orfanato e uma escola, que foi rebatizada Escola Duque de Caxias
(o mesmo nome de uma que também foi apadrinhada por militares brasileiros de outra força de
paz, a de Timor Leste).
Ao mesmo tempo em que ainda
falta boa parte do contingente de
militares e de policiais aprovado
pela ONU, os que já estão lá têm
cada vez mais tarefas a cumprir.
Deveriam vir 1.622 policiais civis estrangeiros e 6.700 militares.
Chegaram apenas 480 policiais
-incluindo três PMs brasileiros- e 2.800 soldados (dos quais
1.197 formam a Brigada Haiti brasileira). Mas os números escondem o fato de que quase metade
das tropas cumpre funções de
apoio, não diretamente envolvidas no patrulhamento do país
-são cozinheiros, mecânicos etc.
A ausência de policiais têm atrasado a expansão e o treinamento
da força policial haitiana. A ausência de militares deixa vazios
em boa parte do país e sobrecarrega os existentes.
As inundações que causaram
mais de mil mortes na cidade de
Gonaives forçaram os capacetes
azuis a dedicar parte das tropas ao
envio de caminhões com ajuda
humanitária para lá.
No momento há 12 companhias
de infantaria na força de paz (uma
companhia é uma unidade com
cerca de 150 a 200 homens) -cinco brasileiras, duas argentinas,
duas chilenas e três uruguaias.
Faltam chegar outras 12 -quatro do Sri Lanka, quatro do Nepal,
uma do Peru, uma da Espanha e
uma do Paraguai, além de uma
companhia de engenharia chileno-equatoriana.
Tensão
Partidários do presidente deposto Jean-Bertrand Aristide protestaram ontem pelo terceiro dia
consecutivo, atirando pedras em
veículos que circulavam nas ruas.
Anteontem, dois pelotões brasileiros trocaram tiros com supostos partidários de Aristide. Ainda
ontem, a Força Aérea Brasileira
enviou um avião ao Haiti com 9t
de alimentos e 6t de hipoclorito de
sódio para serem entregues aos
desabrigados no país.
O jornalista Ricardo Bonalume Neto
viajou ao Haiti por cortesia do Ministério
da Defesa em aeronave C-130 da FAB.
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