São Paulo, domingo, 03 de outubro de 2004

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MISSÃO NO CARIBE

Presença de tropas de paz não muda cenário de ausência de segurança, recrudescimento da violência e pobreza

Após quatro meses, Haiti segue sem Estado

RICARDO BONALUME NETO
ENVIADO ESPECIAL AO HAITI

A cena era insólita e parecia indicar que estava havendo progresso no policiamento do Haiti: havia de fato policiais controlando o caótico trânsito em torno de uma rotatória próxima ao aeroporto da capital, Porto Príncipe. Mas a ilusão logo se desfez. Era um trabalho pontual.
Os policiais estavam ali apenas para facilitar a passagem de um comboio de carros oficiais em alta velocidade precedido de batedores em motocicletas. Mal passaram as autoridades, os policiais foram embora, e os haitianos comuns ficam entregues ao caos de sempre, com a buzina servindo de instrumento básico para facilitar a ida do ponto A ao ponto B.
A cena simboliza bem a ausência do Estado no cotidiano haitiano. Quatro meses depois que tropas de paz brasileiras chegaram ao país, o Haiti continua com os mesmos problemas -piorados, em alguns casos.
A violência recrudesceu na última semana. Houve sete assassinatos ligados a protestos de grupos leais a Jean-Bertrand Aristide, presidente deposto em fevereiro e que está exilado na África do Sul.
Há ainda as centenas de mortes causadas por desastres naturais, como as inundações provocadas pela tempestade tropical Jeanne. E há os problemas antigos, como o desemprego crônico e a falta de eletricidade a maior parte do dia. Além disso, as ruas continuam repletas de lixo -apesar de alguma melhora em alguns pontos da capital. Já há mais caminhões recolhendo o lixo. E só.
Marie Yolenne Romelus, 23, desempregada, grávida, é um bom exemplo da situação da população pobre haitiana. Nem ela, nem seus dois filhos tinham ainda comido por volta da hora do almoço e não tinham previsão de quando (ou se) teriam comida naquele dia. Seu marido é carpinteiro e só trabalha esporadicamente.
Marie Yolenne e sua família vivem em uma casa de apenas um cômodo que serve de dormitório e cozinha. Não há banheiro. É a típica casa haitiana de blocos de cimento -nisso a família está em condição bem melhor que os milhares de favelados que moram em barracos de madeira com jornal forrando as paredes e com esgoto correndo entre eles.
Ela também tem uma vantagem: vive perto de um poço de onde crianças tiram água. E crianças não faltam no Haiti. A média mundial de fecundidade é de 2,8 filhos por mulher; no Haiti a taxa é de 4,7 crianças por mulher.
O pintor Jean-Claude Jean resolveu explorar um filão diferente: na falta de turistas normais, que fugiram do Haiti, ele procura vender para os militares da ONU. Montou seu "ateliê" na frente de um dos aquartelamentos de soldados brasileiros, no prédio de uma universidade que ainda não voltou a funcionar.
Ele colocou à venda de manhã um quadro com as bandeiras do Brasil e Haiti e mostrando um soldado. Pela hora do almoço já tinha vendido. "Posso fazer um para você em 30 minutos", diz.
Os soldados têm pouco contato com a população fora do seu trabalho. Não é recomendável sair só pelas ruas, especialmente às noite e há poucos locais para se divertir.
Os brasileiros já fizeram vários projetos chamados pela ONU de "impacto rápido". Fizeram a limpeza de um canal de escoamento de águas de chuva, reurbanizaram uma praça e reformaram um orfanato e uma escola, que foi rebatizada Escola Duque de Caxias (o mesmo nome de uma que também foi apadrinhada por militares brasileiros de outra força de paz, a de Timor Leste).
Ao mesmo tempo em que ainda falta boa parte do contingente de militares e de policiais aprovado pela ONU, os que já estão lá têm cada vez mais tarefas a cumprir.
Deveriam vir 1.622 policiais civis estrangeiros e 6.700 militares. Chegaram apenas 480 policiais -incluindo três PMs brasileiros- e 2.800 soldados (dos quais 1.197 formam a Brigada Haiti brasileira). Mas os números escondem o fato de que quase metade das tropas cumpre funções de apoio, não diretamente envolvidas no patrulhamento do país -são cozinheiros, mecânicos etc.
A ausência de policiais têm atrasado a expansão e o treinamento da força policial haitiana. A ausência de militares deixa vazios em boa parte do país e sobrecarrega os existentes.
As inundações que causaram mais de mil mortes na cidade de Gonaives forçaram os capacetes azuis a dedicar parte das tropas ao envio de caminhões com ajuda humanitária para lá.
No momento há 12 companhias de infantaria na força de paz (uma companhia é uma unidade com cerca de 150 a 200 homens) -cinco brasileiras, duas argentinas, duas chilenas e três uruguaias.
Faltam chegar outras 12 -quatro do Sri Lanka, quatro do Nepal, uma do Peru, uma da Espanha e uma do Paraguai, além de uma companhia de engenharia chileno-equatoriana.

Tensão
Partidários do presidente deposto Jean-Bertrand Aristide protestaram ontem pelo terceiro dia consecutivo, atirando pedras em veículos que circulavam nas ruas. Anteontem, dois pelotões brasileiros trocaram tiros com supostos partidários de Aristide. Ainda ontem, a Força Aérea Brasileira enviou um avião ao Haiti com 9t de alimentos e 6t de hipoclorito de sódio para serem entregues aos desabrigados no país.


O jornalista Ricardo Bonalume Neto viajou ao Haiti por cortesia do Ministério da Defesa em aeronave C-130 da FAB.


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