São Paulo, domingo, 03 de outubro de 2004

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Visita à casa de um pai que perdeu a mulher e a filha no ataque à escola de Beslan revela a dimensão da tragédia que abalou o mundo

Sombra do horror

James Hill/"The New York Times"
Sapatos que pertenciam às vítimas do ataque em Beslan ficam expostos no parapeito de janela de uma sala da escola russa


SETH MYDANS
DO "NEW YORK TIMES", EM BESLAN

A cada manhã, Vova Tumayev põe a mesa do café para três pessoas marido, mulher e sua adorada filha de dez anos. Ninguém come. Tumayev senta-se à mesa sozinho por algum tempo e depois guarda a louça. Sua mulher, Zinaida, e a filha, Madina, foram mortas durante o cerco a uma escola em Beslan, no começo de setembro, duas entre as centenas de vítimas de um ataque ligado à guerra na Tchetchênia.
Não há nada que Tumayev possa fazer -nenhum ritual, nenhum ato de luto- para começar a preencher o vazio deixado por essas perdas. De noite, conta, ele dorme na cama da filha.
"As pessoas perguntam se isso não me dá medo", disse Tumayev, 44, que trabalha como encanador. "Digo que não tenho medo de coisa alguma. Mas, é verdade, sempre que me deito lá, coisas estranhas surgem diante dos meus olhos."
Enquanto as pessoas desta pequena cidade lutam para lidar com a dor, a escola onde as crianças morreram também se tornou um lugar de ecos e memórias. Quase demolida, recoberta de destroços, a escola está repleta de flores e oferendas, com mensagens de condolências escritas como pichações nas paredes.

"Fazia tudo por ela"
Tumayev é apenas uma das pessoas solitárias que estão de luto em uma cidade onde milhares de moradores perderam amigos e parentes. Casou-se um tanto tarde, aos 34 anos, com uma professora de pré-primário, e o aconchego de uma família, em seu pequeno apartamento de solteiro, o deixava repleto de alegria e contentamento.
"Eu dava a ela tudo o que ela pedia", diz, sobre a filha. "Jamais lhe disse não."
"Minha mulher costumava me aconselhar a ser severo com ela, para que me obedecesse, mas eu não conseguia. Às vezes, minha mulher lhe dava umas broncas. Mas eu nunca o fiz. Quando chegava do trabalho, a menina corria para me abraçar na entrada", diz Tumayev.
Os amigos já começam a insistir que ele precisa retomar a vida, assim que o período tradicional de luto se esgotar, como se fosse possível deixar para trás o passado. "Eles me dizem que, depois de 40 dias, eu deveria me casar de novo", afirma. "Mas, mesmo que me case mais dez vezes, jamais terei uma criança como aquela. Como eu a amava, como eu a amava."

"Tiro na cabeça"
Tumayev reconheceu os corpos de sua família imediatamente no necrotério, conta, ainda que estivessem calcinados, grotescos. "Minha filha recebeu um tiro na cabeça", diz.
"Uma perna foi arrancada, e a outra mal se mantinha presa ao seu corpo. O rosto dela estava tão queimado que era impossível reconhecer qualquer traço. Reconheci apenas seus brincos e um cacho de seus cabelos. Sabia que se tratava de minha filha."
"As pessoas me diziam que talvez não fosse ela", conta. "Os corpos estavam numerados, e eu pedi que alguém anotasse o número. Sabia que eram elas."
Tumayev montou um pequeno santuário em casa, uma mesa onde estão dispostas bananas, maçãs, frutas secas, biscoitos e os brinquedos favoritos de sua filha.
O apartamento dele está repleto de fotografias da menina, da mesma forma que os muros da escola estão recobertos com fotos de crianças desaparecidas, cada uma das quais o lembrete de uma ausência.
Ele apanha um pequeno álbum de fotos em uma estante e começa a virar as páginas, uma a uma, explicando cada foto a um visitante. "É ela", aponta, mostrando uma menina sorridente, usando um vestido vermelho. "É ela, é ela, nesta ela está na praia, e aqui também é ela, e mais aqui, essa outra é ela também, e mais uma vez, ela, ela de novo, ela no campo; lá, ela outra vez. E por fim, ela, também."
"Oh, isso é difícil", afirma, mas continua virando as páginas. "Nesta ela está em Rostov; naquela outra, ela de novo, com a mãe; e mais uma dela; lá está, ela era alta, quase da minha altura; mais uma foto dela, e outra, e mais uma, ela outra vez, e outra vez; lá, ela está com amigos -aquela menininha também morreu, aquela que está acenando."
"Nesta casa, tudo é ela", diz Tumayev, entregando o álbum ao visitante. "Não quero mais olhar."


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