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ARTIGO
Cuba resiste, solidariamente
FREI BETTO
ESPECIAL PARA A FOLHA
A Revolução cubana completa,
contra vento e maré, 45 anos, sobre uma quádrupla ilha: a geográfica, a política (Cuba é o único
país socialista do Ocidente), a que
decorre da exclusão da OEA e a
imposta pelo bloqueio americano. Em condições tão adversas, é
surpreendente que tenha resistido a dez presidentes dos Estados
Unidos, a 20 diretores da CIA e ao
efeito dominó causado pela queda do Muro de Berlim.
O motivo é o apoio popular à
soberania encarnada na figura carismática de Fidel.
Dos 11 milhões de habitantes, a
minoria rica há tempos abandonou a ilha. A maioria sabe que,
apesar das dificuldades, o país
apresenta índices sociais superiores aos das nações mais ricas do
continente.
Segundo a ONU (julho/2003), a
esperança de vida em Cuba é de
76,5 anos, inferior apenas à da
Costa Rica (77,9).
É a nação mais alfabetizada da
América Latina: 96,8% dos adultos. Dispõe de 1 médico para 400
habitantes. A mortalidade infantil
atinge 7 em cada 1.000 nascidos
vivos -o mesmo índice sueco.
Todo o sistema de educação e de
saúde é inteiramente gratuito.
Se Cuba é socialmente tão avançada, a ponto de merecer elogios
de João Paulo 2º quando a visitou,
em 1998, por que há quem fuja do
país? O Brasil tem 3 milhões de cidadãos vivendo fora de suas fronteiras. A diferença é que a economia cubana, socializada, não admite turismo individual no exterior, leia-se, evasão de divisas para
satisfação própria.
O que não impede que cubanos
viajem mundo afora, em missões
científicas, artísticas, comerciais e
diplomáticas, em geral bancados
pelo Estado.
Hoje, há médicos e professores
cubanos em mais de 40 países do
Terceiro Mundo, inclusive no
Brasil, trabalhando em áreas consideradas "desprezíveis" por muitos profissionais formados no capitalismo.
Dos que se foram de Cuba, fascinados pelo "american way of life", não conheço nenhum que esteja empenhado em melhorar as
condições dos pobres nos países
que os acolheram. Pelo contrário,
os cárceres dos EUA estão repletos de cubanos evadidos.
Viver em Cuba exige altruísmo,
como viver em comunidade ou,
por exemplo, num convento. O
"nosso" deixa pouco espaço para
o "meu". Como o egoísmo é a
nossa tendência negativa mais
forte, não são todos que suportam
a idéia de que nunca poderão ficar
ricos e desfrutar das quimeras que
o dinheiro promete.
Para quem é rico no Brasil, por
exemplo, onde os 10% mais privilegiados possuem 42% da renda
nacional (e os 10% mais pobres
dividem entre si 0,9%), viver em
Cuba é estar condenado ao inferno: nada de carro do ano, férias
no exterior, consumo supérfluo
ou o prazer de ingerir, em poucos
minutos, uma bebida mais cara
que o valor do salário mensal do
empregado que a serve.
Para quem é classe média, é padecer no purgatório: a burocracia,
o partido único, as dificuldades
impostas pelo bloqueio. Mas, para quem está desempregado ou é
assalariado, é conhecer o céu: em
Cuba não há desemprego, favelas
e violência urbana.
E todos têm assegurados os três
direitos básicos: alimentação,
saúde e educação. Qual outro país
no continente garante tais direitos
humanos ao conjunto de sua população?
Em 45 anos, a Revolução cometeu muitos erros, mas nenhum
tão grave para levá-la ao fracasso.
Dizia-se que Cuba se mantinha
graças à União Soviética. Esta desapareceu e nem por isso a Revolução submergiu.
Incluo-me entre os que condenam os fuzilamentos que ali ocorrem. Mas não ouço o coro de protestos lembrar que, enquanto governador do Texas, Bush assinou
152 condenações à morte.
Nenhum de nós é capaz de imaginar uma base cubana encravada
na Califórnia. Porém o senso comum parece admitir, sem indignação, que haja uma base americana em Guantánamo, agora
transformada em masmorra de
afegãos, supostos terroristas privados do mais elementar direito
de defesa.
Pode-se criticar Cuba em muitos aspectos, mas não há como
exigir distensão política enquanto
a espada de Dâmocles do bloqueio americano pesar sobre o
seu pescoço. Se Cuba é tão horrível, por que atrai mais turistas que
o Brasil, e a Casa Branca não permite, contrariando todas as leis
internacionais, que a ilha mantenha relações diplomáticas e comerciais com o resto do mundo?
Com ou sem Fidel, Cuba terá de
mudar, pois a história é implacável. Espero, contudo, que seu futuro não seja o presente do resto
da América Latina: democracias
formais cercadas de miséria, drogas, violência e desemprego por
todos os lados.
E que, no futuro, permaneça, à
saída do aeroporto José Martí, em
Havana, este painel de boas-vindas a quem chega ao país: "Esta
noite, milhões de crianças dormirão nas ruas do mundo. Nenhuma delas é cubana".
Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei
Betto, frade dominicano, é escritor, autor de "Gosto de Uva", entre outros livros, e assessor especial do presidente
Luiz Inácio Lula da Silva.
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