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CIDADANIA GLOBAL
Cresce a participação em ONGs que lutam por temas como a justiça global
e a democracia; "Hoje, se você quer mudar o mundo, não entra em um
partido, mas se torna parte de alguma campanha global", diz especialista
Cidadão do mundo
MARIA BRANT
DA REDAÇÃO
O mundo todo viu os milhares
de manifestantes tentando bloquear a reunião da OMC (Organização Mundial do Comércio) em
Seattle em 1999. A cena se repetiu
em 2000 em Washington e Praga,
em reuniões do FMI e do Banco
Mundial, e, finalmente, em Gênova, em uma cúpula do G-8 em julho do ano passado, quando a
morte de um estudante italiano
pela polícia os levou às primeiras
páginas dos jornais do mundo.
Cerca de dois meses depois, porém, os terroristas que derrubaram as torres do WTC em Nova
York e a subsequente reação dos
EUA os empurraram para o "pano de fundo político", nas palavras do jurista americano Richard
Falk.
Hoje, pouco mais de um ano
após Gênova e pouco menos de
um ano após 11 de setembro, eles
parecem ter desaparecido, pelo
menos da mídia. O movimento de
cidadãos globais, ou da sociedade
civil global -que ganhou visibilidade com os manifestantes, mas
não se limita a eles-, contudo,
está mais vivo do que nunca. Mas
o que querem os cidadãos globais? Como se organizam?
Em primeiro lugar, pedem para
que o movimento ao qual pertencem não seja chamado de antiglobalização, como costumavam dizer as legendas das fotos das manifestações. "Esse termo é uma invenção da mídia. Esse é um movimento de cidadãos pela justiça
global", diz Susan George, vice-presidente da Attac-França (Ação
pela Tributação das Transações
financeiras em Apoio aos Cidadãos). "Eles se opõem à globalização corporativa dirigida pelo
mercado, mas não são antiglobalização, o que seria inútil: a tecnologia e a facilidade de viajar estão
nos aproximando, e isso é bom."
O termo "globalização de baixo
para cima", cunhado por Falk em
1994, passou a designar a causa
geral pela qual se orientam. "A
globalização de baixo para cima
são as forças sociais, movimentos,
voluntários, ONGs que tentam
criar uma comunidade além do
Estado territorial", afirma Falk.
Segundo o sociólogo carioca
Liszt Vieira, autor de "Os Argonautas da Cidadania" (ed. Record) e secretário de Meio Ambiente do Rio de Janeiro, eles lutam em torno de três bandeiras:
"a democracia política, social e
econômica, a diversidade cultural
e a sustentabilidade ambiental".
É importante lembrar que a sociedade civil global não é formada
só por manifestantes.
De acordo com o Relatório de
Desenvolvimento Humano de
2002 da ONU, divulgado recentemente, houve um crescimento de
19,3% no número de ONGs internacionais entre 1990 e 2000.
"Essa resistência à globalização
econômica dominante se tornou
mais visível a partir de Seattle,
mas já vinha de muito antes. Os
Estados reunidos na ONU já vinham sofrendo pressão e lobby de
organizações da sociedade civil",
diz Vieira, que acompanhou reuniões internacionais de ONGs de
1991 a 1995. "Houve uma influência real, e em muitas decisões finais da ONU houve influência de
propostas da sociedade civil."
Representação
Não é fácil conciliar a imagem
de um mundo de cidadãos globais
lutando contra as "injustiças da
globalização" em um momento
de ascensão da direita na Europa e
de altos níveis de abstenção eleitoral entre jovens. Mas, segundo os
especialistas ouvidos pela Folha,
esses dois fenômenos são ligados.
Para Falk, a convivência das
duas tendências é normal. Momentos de transformação, diz,
sempre provocam reações contraditórias, em que um lado "tenta reviver as formas mais rígidas
do velho sistema e outro tenta gerar a base para um novo sistema".
Segundo Mary Kaldor, diretora
do Programa para o Estudo da
Sociedade Civil Global da London
School of Economics, a abstenção
eleitoral está relacionada a uma
percepção de que o Estado nacional tem menos autonomia. "Muitas pessoas sentem que os governos têm menos capacidade de influenciar diretamente a situação
na qual vivemos, então não há
mais razão para votar neles."
De fato, segundo uma pesquisa
mundial do instituto Gallup apresentada pelo secretário-geral da
ONU, Kofi Annan, na Cúpula do
Milênio, em 2000, dois terços da
humanidade não se sentiam representados por seus governos.
Para Kaldor, esse sentimento
tem um lado positivo. "Com o
crescimento de movimentos sociais e da sociedade civil nos anos
70 e 80, cada vez mais jovens que
tradicionalmente teriam entrado
na política partidária entraram
em ONGs ou movimentos sociais", afirma. "Hoje, se você quer
mudar o mundo, não entra em
um partido, mas se torna parte de
alguma campanha global."
Essa percepção da perda da capacidade do Estado de influenciar
a vida de seus cidadãos, aliada à
de que grande parte das decisões
globais são tomadas por órgãos
multilaterais, também levou ao
questionamento da representatividade dessas instituições.
Segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano de 2002 da
ONU, que dedica um capítulo ao
assunto, "quase metade do poder
de voto no Banco Mundial e no
FMI está nas mãos de sete países".
Além disso, na OMC, "as decisões
são tomadas em reuniões de pequenos grupos e altamente influenciadas por Canadá, União
Européia, Japão e EUA".
Diversas ONGs se dedicam especialmente ao assunto. A 50
Years Is Enough, por exemplo,
dedica-se à democratização do
FMI e do Banco Mundial. Alguns
intelectuais, como Falk, e ativistas, como o jornalista britânico
George Monbiot, defendem a
criação de um Parlamento global,
ou assembléia geral dos povos.
A ONU reconhece a possibilidade de uma tal assembléia, mas
aponta para o sucesso de campanhas de ONGs e movimentos da
sociedade civil em esforços de responsabilização -destacando seu
papel na formação do TPI (Tribunal Penal Internacional)- e para
um programa de parcerias de empresas com as Nações Unidas.
A parceria é tema de uma das
campanhas da ONG CorpWatch.
"É preciso examinar as práticas
ambientais e de direitos humanos
dessas companhias, ou elas podem usar a parceria com a ONU
simplesmente como uma jogada
de marketing", diz Julie Light,
editora-executiva da organização,
com sede San Francisco.
Redes
A CorpWatch ilustra bem a ligação entre os movimentos pela justiça global e a internet.
Na rede, há inúmeros sites voltados para o público dos cidadãos
globais. No Idealist.org, da Action
Without Borders, é possível procurar empregos em ONGs em todo o mundo. No Global Exchange, acham-se até pacotes turísticos -ou "reality tours"- que incluem trabalho em organizações
de prevenção à Aids no Zimbábue
ou visitas para acompanhar a reconstrução do Afeganistão.
A CorpWatch é um site que publica notícias sobre as práticas de
corporações. O objetivo não é pedir o boicote a produtos de empresas consideradas pouco responsáveis, mas informar pessoas
físicas que compram ações e dar
consultoria a administradoras de
fundos de pensão.
A influência da internet sobre o
movimento da sociedade civil
global não se limita ao uso do
meio para divulgar campanhas.
Segundo o sociólogo Vieira, a internet influenciou sua forma de
organização, "em redes de caráter
transversal, e não vertical".
"Há uma preocupação enorme
em evitar se transformar em organismos centralizados, como movimentos sindicais", afirma.
Uma das maiores ONGs internacionais, a Friends of the Earth,
com 1,1 milhão de membros, é um
exemplo. Ela é uma rede de ONGs
locais de 70 países que se unem
em torno de campanhas comuns.
"Cada campanha envolve o trabalho de muitas de nossas organizações, às vezes tentando influenciar uma posição no nível local,
outras vezes tentando influenciar
decisões internacionais", diz o
ambientalista salvadorenho Ricardo Navarro, presidente da
Friends of the Earth International.
A formação em redes tem a ver
com os objetivos desses grupos.
"Nenhuma organização quer tomar o poder, mas democratizar o
Estado para fazer com que ele seja
permeável aos influxos e influências que vêm dos organismos da
sociedade civil", afirma Vieira.
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