São Paulo, domingo, 05 de maio de 2002

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Para filósofo Claude Lefort, direita deve "tomar consciência" e evitar aliança com extrema direita

"Perigo lepenista pode recuperar política"

Associated Press
Peça de campanha de Le Pen, imitando uma carta de baralho


DE PARIS

Para o filósofo Claude Lefort, um dos principais pensadores políticos da atualidade, não está descartada a hipótese de a direita francesa vir a "se organizar" no futuro com a extrema direita de Jean-Marie Le Pen. "Esperemos que a direita tome consciência de que ela própria está ameaçada pela extrema direita e produza uma distância", diz.
Lefort também tem dúvidas de que a direita fosse dar seus votos para o socialista Lionel Jospin, caso o embate atual das eleições francesas se desse entre ele e Le Pen. Para conter a extrema direita, os partidos de esquerda, quase sem hesitação, pediram aos seus simpatizantes que votassem em Jacques Chirac (centro-direita).
Autor de importantes obras do pensamento político, como "Elementos de uma Crítica da Burocracia" (1971) e "A Invenção Democrática" (1981), Lefort foi discípulo do filósofo Maurice Merleau-Ponty e participou da fundação do grupo de esquerda Socialismo ou Barbárie, dedicado à crítica do totalitarismo comunista. Na década de 50, deu aulas na Universidade de São Paulo.
Na entrevista a seguir, feita em seu escritório na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, da qual é diretor de estudos emérito, Lefort falou sobre as causas do avanço de Le Pen na França e sobre os riscos que ele representa para a democracia européia. (ALCINO LEITE NETO)

Folha - Na sua opinião, o que permitiu a chegada da extrema direita ao segundo turno das eleições?
Lefort -
Ninguém esperava esse fenômeno, foi uma enorme surpresa. Como compreender as causas? Antes, não se pode esquecer de que Le Pen já havia feito 15% nas eleições de 1995. Ou seja, o movimento de extrema direita existe há muito tempo na paisagem francesa. Segundo, o sentimento de insegurança é um fato. As agressões, os pequenos roubos e a incivilidade se aceleraram nos últimos anos. Faço um parênteses para dizer que a insegurança que reina na França é sem medida de comparação com a que existe em São Paulo. Mas os franceses se revolvem contra perigos que são, de certo modo, característicos da vida nas grandes metrópoles.
A isso se ajunta a exploração que é feita da insegurança pela pela mídia, dia após dia, alimentando as pessoas com tragédias de todo tipo. A exploração do tema pelo candidato principal, Jacques Chirac, e também pelo candidato socialista (Lionel Jospin), acabou transformando a insegurança no problema número um da política francesa. Não resta dúvida de que isso deu credibilidade ao discurso de Le Pen, que há muito tempo é feito em nome da ordem e do restabelecimento da ordem, com sua crítica da democracia como uma sociedade turbulenta, onde a autoridade desaparece em todos os níveis, seja familiar ou político.
A terceira causa é que, de fato, está se operando na França há anos uma cisão entre a massa dos que têm trabalho e gozam de estabilidade, embora não sejam ricos, cerca de quatro quintos da sociedade francesa, e a outra parte das pessoas, que são sem trabalho e vivem na precariedade. Essa condição toca particularmente os jovens, que não podem se integrar no processo de produção econômica e aqueles que foram expulsos dele. Chirac venceu nas últimas eleições sob o tema que ele desenvolveu de "fratura social". Excelente imagem: há uma fratura social. Mas não é a mesma fratura do passado, de classes, entre o proletariado e a burguesia. É a que existe entre os que estão socializados, graças ao seu trabalho, e aqueles que são ligados a empregos muito mal remunerados ou que estão desempregados. O mais importante hoje é conseguir a reintegração dessas pessoas que vivem na margem da sociedade próspera, entre elas os imigrantes. Essa integração é social e econômica, mas também política, no sentido de permitir que eles compartilhem valores democráticos.

Folha - Os medos advindos da construção da União Européia podem ser também causa da escalada do lepenismo?
Lefort -
Sim. A França está em via de conhecer uma verdadeira mutação advinda de sua inclusão na Europa. Existe já uma burocracia européia em Bruxelas que toma uma série de medidas, desde coisas aparentemente insignificantes até outras que antes diziam respeito ao direito nacional. A partir dessa progressiva subordinação, desenvolve-se um começo de inquietude e de angústia diante da perda da identidade nacional e do crescimento de um poder longínquo, de uma supraburocracia que decidiria os destinos.
Só esse fenômeno pode explicar que, em certas regiões rurais, onde não há nenhum sinal de degradação ou de insegurança nem de ameaça econômica ou social, tenhamos visto uma formidável votação para Le Pen. As pessoas que habitam essas regiões temem antes de tudo esse desconhecido que é o desenvolvimento da Europa.
Por fim, na França não há talvez um dia em que não haja uma greve em algum lugar. Quando, no fim do ano passado, eu soube que os policiais estavam em greve, pensei: esse Estado está realmente ameaçado. Não quero manter nenhum propósito reacionário, mas isso é um sintoma e também uma outra explicação para o sucesso de Le Pen. Quando o camponês vê os policiais em greve, o seu respeito pela autoridade do Estado é consideravelmente diminuído.

Folha - Quais os efeitos do avanço de Le Pen para o sistema político?
Lefort -
É difícil prever o que se passará com as eleições legislativas, que são muito importantes. Mas não estou certo se teremos uma debacle política. Creio, ao contrário, que, diante do perigo que é o lepenismo, pode-se esperar que haja uma certa reestruturação do sistema político, da vida política. Tudo isso talvez dê mais clareza aos antagonismos entre direita e esquerda. Poderemos ver como a direita, caso ganhe as legislativas, afrontará o problema que o lepenismo coloca. Até o momento, o partido de Chirac, o RPR (Reunião pela República), tomou a iniciativa de explorar em seu benefício o perigo lepenista, neutralizando as forças centristas de François Bayrou e Alain Madelin (outros candidatos de centro-direita no primeiro turno). Esse jogo de ambições prosseguirá, mas se pode esperar também que, face ao lepenismo, venha a ser desenhado um comportamento político diferente. Eu lhe digo uma coisa: no conjunto, a esquerda vai votar em Chirac, contra Le Pen, mas não estou certo que, caso o duelo fosse entre Jospin e Le Pen, a direita no seu conjunto votaria em Jospin. Não tenho confiança de que isso fosse ocorrer.

Folha - O sr. quer dizer que a direita poderia no futuro se unir à extrema direita?
Lefort -
Não é impossível que a direita procure se organizar com a extrema direita. Esperemos, ao contrário, que a direita tome consciência de que ela própria está ameaçada pela extrema direita e realmente faça um corte, produza uma distância.

Folha - O sr. acha que uma nova forma de fascismo está sendo engendrada na França e na Europa?
Lefort -
É difícil empregar a palavra fascismo, que está tão determinada historicamente. O nazi-fascismo sempre começou com ações violentas, militarizadas, com milícias armadas que aterrorizavam, ao mesmo tempo que tentavam convencer. Ora, até o instante, não há nada disso na França. O movimento fascista também se beneficiou de uma situação econômica de crise grave e do apoio dado pelos dirigentes de empresa, do grande capital. Na França, essa perspectiva parece impossível, pois o capitalismo do país embarcou na globalização, no liberalismo econômico. Mas tudo dependerá mais uma vez da capacidade da democracia de dar respostas. Na década de 30, no começo do nazismo, quando o centro-esquerda se afundou no Reichstag e os socialistas viram o seu apoio ser consideravelmente enfraquecido, as pessoas adotaram o nazismo (ou, antes, o fascismo) como um ato de protesto. Uma vez a dinâmica colocada em movimento, eles se tornaram os brutos que sabemos. Não podemos, por isso, deixar de ficarmos profundamente inquietos, pois mais uma vez o protesto pode se transformar em comportamento violento. Essas pessoas que hoje manifestam o seu protesto dando o voto a Le Pen, se não se souber responder às dificuldades que elas encontram na vida, no futuro podem se transformar em verdadeiros fascistas. É terrível.



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