São Paulo, domingo, 05 de maio de 2002

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Le Pen destrói identidade francesa ao defendê-la

EDGAR MORIN

A eleição de 25 de abril traz revelações tanto sobre as carências que afetam nossa democracia quanto sobre os perigos que ela corre. Uma depressão se formou nos centros (de esquerda e de direita). Uma estagnação e uma falta de fôlego políticos que se traduziram no vazio das campanhas de Chirac e Jospin, no recurso a slogans publicitários, mais do que a mensagens, e na formulação de pequenos programas, mais do que de grandes perspectivas.
Nos dois extremos, duas regressões, uma delas demasiado ideal, que ressuscita um trotskismo que já estava morto, e a outra demasiado real, ressuscitando um nacionalismo integrista, com componentes racistas. O fato de que os votos dados a um extremo e ao outro com frequência não indicam adesão a seus pontos de vista, mas um sentimento de estar farto de tudo, é apenas relativamente tranquilizador, já que também traduz o descrédito em que caíram os partidos principais.

Insegurança e angústia
A campanha foi dominada pelo tema da insegurança, trazido à tona por ocorrências policiais violentas. Na própria véspera da eleição francesa, o martírio do velhinho de Orléans mostrado diversas vezes na televisão exerceu papel emblemático: via-se um septuagenário, de rosto inchado, vítima de jovens criminosos extorsionários que, depois de espancá-lo, destruíram a casa que ele erguera com as próprias mãos. Além da indignação e do repúdio que provoca, um ato como esse parece simbolizar o destino da velhice solitária e pobre, vítima da delinquência juvenil.
Tanto Chirac quanto Jospin tinham indicado sua intenção de enfrentar os sintomas da insegurança (a criminalidade), mas ignoraram suas causas profundas. Quanto a Le Pen, afirmou que trará um remédio radical, ao vincular o problema da insegurança à questão da identidade nacional, vítima da corrupção estrangeira, e fazer da regeneração dessa identidade a resposta a todas as inseguranças.
Acontece que isso mascara as causas sociais e civilizacionais que uma esquerda ou uma direita social deveria ter diagnosticado.
Para começar, podemos dizer que a insegurança suscitada por roubos e agressões abre espaço para que uma insegurança mais profunda se exprima no visível, conferindo à angústia interior seu abscesso de fixação externa.
Duas fontes alimentam essa angústia. A primeira delas vem da degradação de um tecido social que perdeu suas antigas solidariedades, sem, contudo, criar novas, somada ao enfraquecimento do superego cívico nos espíritos.
Ao mesmo tempo, a tendência à agressão que é natural das turmas de adolescentes conduz, sob condições de marginalização social, à formação de gangues, ou seja, de microsociedades fechadas, isoladas do conjunto da sociedade e dispondo de uma economia própria, produto do roubo e das drogas.
Esse diagnóstico permite compreender que o problema é sociológico, não étnico -que não é a integração dos jovens de origem norte-africana que é a causa da delinquência, mas as instâncias em que não ocorre integração. Ele nos leva a procurar não apenas uma repressão eficaz, não apenas uma política ao nível dos sintomas (habitação, créditos, lazer, esportes etc.), mas, sobretudo, uma política de regeneração do tecido social à qual eu chamo política de civilização.
A segunda fonte está num mal-estar que vem não apenas das carências de nossa sociedade, mas também da dissolução da crença num futuro melhor. Quando ocorre a perda do futuro e a angústia quanto ao presente, há não apenas recuo para o imediato, mas também, de maneira correlata, recuo para o passado. Enquanto isso, a globalização tecnoeconômica suscita, como reação, a tendência mundial aos recuos de identidade.
Assim, podemos situar o lepenismo francês entre os recuos de identidade que existem no mundo, especialmente os nacionalismos integristas europeus (que se exacerbaram na Sérvia e na Croácia e, mais tarde, penetraram na Áustria, na Itália e nos países nórdicos). Seu integrismo nacionalista se afirma remédio e resposta a todos os males e perigos e inclui a rejeição à Europa e à globalização.
O lepenismo formou-se nos anos 1960, a partir da humilhação do abandono da Argélia ""francesa". Ele compreende a fixação sobre o imigrante vindo do norte da África, ser inferior que se transforma, sem razão, em igual, colonizado que passa a ""colonizar" a França. O ódio golpista contra De Gaulle constituiu uma via de comunicação com o ódio vichysta. E o conteúdo do lepenismo chegou ao de Vichy, em sua rejeição à corrupção estrangeira, a rejeição à imigração, a retirada da nacionalidade francesa concedida aos naturalizados que não fizeram por merecê-la, a responsabilidade dos intelectuais apátridas ou cosmopolitas, e (tema oculto pela perversa lei Gayssot) o complô judaico-plutocrático.
Existe, além disso, uma dimensão populista no apelo aos pobres, aos dominados, assim como na crítica formulada à elites. A formulação recente ""socialmente de esquerda, economicamente de direita, nacionalmente francês", que ultrapassa e engloba a esquerda e a direita no país, não é nazista, mas ela se tornará nazista na exaltação de uma superioridade racial e na organização de um partido totalitário.
O paradoxo é que, ao romper com tudo que, a seu ver, ameaça a identidade francesa, o lepenismo rompe com a própria identidade francesa, já que esta é constituída por um processo multissecular de afrancesamento, ou seja, de integração de povos e etnias extremamente diversos.
Nesse processo, a Revolução Francesa conferiu ao afrancesamento um fundamento voluntarioso e espiritual. Sem deixar de continuar um ser terrestre, a França torna-se um espírito comum a partir do momento em que os representantes de todas as províncias declaram solenemente seu desejo de serem franceses, na ocasião da festa da Federação, em 14 de julho de 1790; além disso, a Declaração dos Direitos Humanos introduz a idéia da universalidade no código genético singular da identidade francesa. O que significa que a renovação francesa, quando vista dentro dessa lógica histórica, não é um processo de rejeição e de fechamento.
O século 20 viu o afrancesamento seguir adiante no contexto integrador da 3ª República, a partir dos imigrantes vindos de países vizinhos. A República instituiu, então, as leis de naturalização que permitem aos filhos de estrangeiros nascidos na França tornarem-se franceses automaticamente e que facilitam a naturalização dos pais. A instauração, na mesma época, da escola primária leiga, gratuita e obrigatória, permite acompanhar a integração jurídica por uma integração do espírito e da alma.
A preferência nacional constitui, assim, uma ruptura ao mesmo tempo com os princípios da República e com o universalismo francês. A lepenização não é a exaltação da identidade francesa, mas sua degradação.
A identidade francesa, que abrange a cultura republicana universalista, foi constantemente regenerada pela ideologia socialista e, mais tarde, comunista, fonte de fraternidade internacional e de abertura para o exterior.
Entretanto a degradação da ideologia socialista e comunista, aquela da educação republicana, foram conduzindo, imperceptivelmente, para a situação de 21 de abril, em que uma parte dos votos por Le Pen vem da esquerda. Em troca, a cultura adolescente, que comporta um componente cosmopolita concreto (em oposição ao cosmopolitismo abstrato dos tecnocratas), vem contrabalançar essa tendência desastrosa, e as manifestações juvenis, ao lado de seus aspectos simplórios, exprimem uma regeneração do universalismo.
Infelizmente, porém, a esquerda fossilizada é incapaz de dar-se conta do acúmulo de decepções, angústias, frustrações e iras que se expressaram, inclusive na abstenção. Ela não pode conceber a regeneração política necessária à França. Do mesmo modo, é incapaz de propor a Europa como maneira de ultrapassar o nacionalismo e a integração do patriotismo francês, assim como os herdeiros da Internacional Socialista são incapazes de visualizar uma globalização humanista e civilizadora como alternativa à globalização tecnoeconômica.
Essas carências prepararam o cenário para a chegada da Frente Nacional. Entretanto quanta criatividade, quantas iniciativas, associações e disposições de regeneração não existem espalhadas pelo país, desconhecidas dos políticos, que, se fossem reunidas, poderiam ajudar a formular uma política regenerada.
Marcel Proust dizia que o anti-semitismo carrega dentro dele uma verdade que enlouqueceu. Essa verdade é a singularidade do destino histórico judaico, mas essa verdade se torna mentirosa na denúncia racial.
No lepenismo, existem verdades que enlouqueceram.
A verdade da ligação com a pátria, mas pervertida em nacionalismo integrista.
A verdade da denúncia das elites tecnocráticas, econômicas e políticas, de seu cosmopolitismo abstrato, de seu desprezo que ignora as pessoas -mas as elites do nacionalismo integrista carregam dentro delas o pior obscurantismo.
Existe, sobretudo, uma falsidade fundamental acerca da identidade francesa. E, nessa introversão francesa, uma cegueira diante do mundo.
Antes que seja tarde demais, o ""não" à Frente Nacional deve corresponder a um ""sim" à França. Trata-se, para a França, como nos melhores momentos de seu passado, de reconstruir uma política, abrir caminho para uma Europa cidadã e cultural e fazer-se o arauto de uma outra globalização.
Precisamos regenerar o futuro para não regredirmos ao pior do passado.


Edgar Morin, 80, sociólogo francês, é um dos pioneiros dos estudos de cultura e meios de comunicação de massa. Autor de "Autocrítica" e "A Indústria Cultural", foi diretor do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França



Tradução de Clara Allain



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