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Le Pen destrói identidade francesa ao defendê-la
EDGAR MORIN
A eleição de 25 de abril traz revelações tanto sobre as carências
que afetam nossa democracia
quanto sobre os perigos que ela
corre. Uma depressão se formou
nos centros (de esquerda e de direita). Uma estagnação e uma falta de fôlego políticos que se traduziram no vazio das campanhas de
Chirac e Jospin, no recurso a slogans publicitários, mais do que a
mensagens, e na formulação de
pequenos programas, mais do
que de grandes perspectivas.
Nos dois extremos, duas regressões, uma delas demasiado ideal,
que ressuscita um trotskismo que
já estava morto, e a outra demasiado real, ressuscitando um nacionalismo integrista, com componentes racistas. O fato de que os
votos dados a um extremo e ao
outro com frequência não indicam adesão a seus pontos de vista,
mas um sentimento de estar farto
de tudo, é apenas relativamente
tranquilizador, já que também
traduz o descrédito em que caíram os partidos principais.
Insegurança e angústia
A campanha foi dominada pelo
tema da insegurança, trazido à tona por ocorrências policiais violentas. Na própria véspera da eleição francesa, o martírio do velhinho de Orléans mostrado diversas vezes na televisão exerceu papel emblemático: via-se um septuagenário, de rosto inchado, vítima de jovens criminosos extorsionários que, depois de espancá-lo, destruíram a casa que ele erguera com as próprias mãos.
Além da indignação e do repúdio
que provoca, um ato como esse
parece simbolizar o destino da velhice solitária e pobre, vítima da
delinquência juvenil.
Tanto Chirac quanto Jospin tinham indicado sua intenção de
enfrentar os sintomas da insegurança (a criminalidade), mas ignoraram suas causas profundas.
Quanto a Le Pen, afirmou que trará um remédio radical, ao vincular o problema da insegurança à
questão da identidade nacional,
vítima da corrupção estrangeira, e
fazer da regeneração dessa identidade a resposta a todas as inseguranças.
Acontece que isso mascara as
causas sociais e civilizacionais que
uma esquerda ou uma direita social deveria ter diagnosticado.
Para começar, podemos dizer
que a insegurança suscitada por
roubos e agressões abre espaço
para que uma insegurança mais
profunda se exprima no visível,
conferindo à angústia interior seu
abscesso de fixação externa.
Duas fontes alimentam essa angústia. A primeira delas vem da
degradação de um tecido social
que perdeu suas antigas solidariedades, sem, contudo, criar novas,
somada ao enfraquecimento do
superego cívico nos espíritos.
Ao mesmo tempo, a tendência à
agressão que é natural das turmas
de adolescentes conduz, sob condições de marginalização social, à
formação de gangues, ou seja, de
microsociedades fechadas, isoladas do conjunto da sociedade e
dispondo de uma economia própria, produto do roubo e das drogas.
Esse diagnóstico permite compreender que o problema é sociológico, não étnico -que não é a
integração dos jovens de origem
norte-africana que é a causa da
delinquência, mas as instâncias
em que não ocorre integração. Ele
nos leva a procurar não apenas
uma repressão eficaz, não apenas
uma política ao nível dos sintomas (habitação, créditos, lazer,
esportes etc.), mas, sobretudo,
uma política de regeneração do
tecido social à qual eu chamo política de civilização.
A segunda fonte está num mal-estar que vem não apenas das carências de nossa sociedade, mas
também da dissolução da crença
num futuro melhor. Quando
ocorre a perda do futuro e a angústia quanto ao presente, há não
apenas recuo para o imediato,
mas também, de maneira correlata, recuo para o passado. Enquanto isso, a globalização tecnoeconômica suscita, como reação, a
tendência mundial aos recuos de
identidade.
Assim, podemos situar o lepenismo francês entre os recuos de
identidade que existem no mundo, especialmente os nacionalismos integristas europeus (que se
exacerbaram na Sérvia e na Croácia e, mais tarde, penetraram na
Áustria, na Itália e nos países nórdicos). Seu integrismo nacionalista se afirma remédio e resposta a
todos os males e perigos e inclui a
rejeição à Europa e à globalização.
O lepenismo formou-se nos
anos 1960, a partir da humilhação
do abandono da Argélia ""francesa". Ele compreende a fixação sobre o imigrante vindo do norte da
África, ser inferior que se transforma, sem razão, em igual, colonizado que passa a ""colonizar" a
França. O ódio golpista contra De
Gaulle constituiu uma via de comunicação com o ódio vichysta. E
o conteúdo do lepenismo chegou
ao de Vichy, em sua rejeição à corrupção estrangeira, a rejeição à
imigração, a retirada da nacionalidade francesa concedida aos naturalizados que não fizeram por
merecê-la, a responsabilidade dos
intelectuais apátridas ou cosmopolitas, e (tema oculto pela perversa lei Gayssot) o complô judaico-plutocrático.
Existe, além disso, uma dimensão populista no apelo aos pobres,
aos dominados, assim como na
crítica formulada à elites. A formulação recente ""socialmente de
esquerda, economicamente de direita, nacionalmente francês",
que ultrapassa e engloba a esquerda e a direita no país, não é nazista, mas ela se tornará nazista na
exaltação de uma superioridade
racial e na organização de um partido totalitário.
O paradoxo é que, ao romper
com tudo que, a seu ver, ameaça a
identidade francesa, o lepenismo
rompe com a própria identidade
francesa, já que esta é constituída
por um processo multissecular de
afrancesamento, ou seja, de integração de povos e etnias extremamente diversos.
Nesse processo, a Revolução
Francesa conferiu ao afrancesamento um fundamento voluntarioso e espiritual. Sem deixar de
continuar um ser terrestre, a
França torna-se um espírito comum a partir do momento em
que os representantes de todas as
províncias declaram solenemente
seu desejo de serem franceses, na
ocasião da festa da Federação, em
14 de julho de 1790; além disso, a
Declaração dos Direitos Humanos introduz a idéia da universalidade no código genético singular
da identidade francesa. O que significa que a renovação francesa,
quando vista dentro dessa lógica
histórica, não é um processo de
rejeição e de fechamento.
O século 20 viu o afrancesamento seguir adiante no contexto integrador da 3ª República, a partir
dos imigrantes vindos de países
vizinhos. A República instituiu,
então, as leis de naturalização que
permitem aos filhos de estrangeiros nascidos na França tornarem-se franceses automaticamente e
que facilitam a naturalização dos
pais. A instauração, na mesma
época, da escola primária leiga,
gratuita e obrigatória, permite
acompanhar a integração jurídica
por uma integração do espírito e
da alma.
A preferência nacional constitui, assim, uma ruptura ao mesmo tempo com os princípios da
República e com o universalismo
francês. A lepenização não é a
exaltação da identidade francesa,
mas sua degradação.
A identidade francesa, que
abrange a cultura republicana
universalista, foi constantemente
regenerada pela ideologia socialista e, mais tarde, comunista, fonte de fraternidade internacional e
de abertura para o exterior.
Entretanto a degradação da
ideologia socialista e comunista,
aquela da educação republicana,
foram conduzindo, imperceptivelmente, para a situação de 21 de
abril, em que uma parte dos votos
por Le Pen vem da esquerda. Em
troca, a cultura adolescente, que
comporta um componente cosmopolita concreto (em oposição
ao cosmopolitismo abstrato dos
tecnocratas), vem contrabalançar
essa tendência desastrosa, e as
manifestações juvenis, ao lado de
seus aspectos simplórios, exprimem uma regeneração do universalismo.
Infelizmente, porém, a esquerda fossilizada é incapaz de dar-se
conta do acúmulo de decepções,
angústias, frustrações e iras que se
expressaram, inclusive na abstenção. Ela não pode conceber a regeneração política necessária à
França. Do mesmo modo, é incapaz de propor a Europa como
maneira de ultrapassar o nacionalismo e a integração do patriotismo francês, assim como os herdeiros da Internacional Socialista
são incapazes de visualizar uma
globalização humanista e civilizadora como alternativa à globalização tecnoeconômica.
Essas carências prepararam o
cenário para a chegada da Frente
Nacional. Entretanto quanta criatividade, quantas iniciativas, associações e disposições de regeneração não existem espalhadas pelo
país, desconhecidas dos políticos,
que, se fossem reunidas, poderiam ajudar a formular uma política regenerada.
Marcel Proust dizia que o anti-semitismo carrega dentro dele
uma verdade que enlouqueceu.
Essa verdade é a singularidade do
destino histórico judaico, mas essa verdade se torna mentirosa na
denúncia racial.
No lepenismo, existem verdades que enlouqueceram.
A verdade da ligação com a pátria, mas pervertida em nacionalismo integrista.
A verdade da denúncia das elites tecnocráticas, econômicas e
políticas, de seu cosmopolitismo
abstrato, de seu desprezo que ignora as pessoas -mas as elites do
nacionalismo integrista carregam
dentro delas o pior obscurantismo.
Existe, sobretudo, uma falsidade fundamental acerca da identidade francesa. E, nessa introversão francesa, uma cegueira diante
do mundo.
Antes que seja tarde demais, o
""não" à Frente Nacional deve corresponder a um ""sim" à França.
Trata-se, para a França, como nos
melhores momentos de seu passado, de reconstruir uma política,
abrir caminho para uma Europa
cidadã e cultural e fazer-se o arauto de uma outra globalização.
Precisamos regenerar o futuro
para não regredirmos ao pior do
passado.
Edgar Morin, 80, sociólogo francês, é
um dos pioneiros dos estudos de cultura
e meios de comunicação de massa. Autor de "Autocrítica" e "A Indústria Cultural", foi diretor do Centro Nacional de
Pesquisa Científica da França
Tradução de Clara Allain
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