São Paulo, domingo, 05 de setembro de 2004

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AMÉRICA LATINA

Médicos brasileiros que ajudaram vítimas contam casos de desespero e solidariedade no incêndio do supermercado

Voluntários relatam tragédia no Paraguai

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

As imagens do incêndio que consumiu um supermercado na periferia de Assunção, em 1º de agosto, e matou 369 pessoas comoveram o mundo. Mas poucos viram a outra face comovente da tragédia: o trabalho das equipes voluntárias que atenderam os feridos. Uma delas era formada por nove profissionais da equipe do Hospital dos Defeitos da Face, de São Paulo, que pertence à Cruz Vermelha. Eles relataram sua terrível experiência à Folha.

"Doação de pele"
Houve, em primeiro lugar, a forma superlativamente solidária com que a população reagiu à tragédia. A cirurgiã plástica Maria Cláudia Giometti, 33, deu dois exemplos.
O primeiro: foi tão grande a quantidade de doadores de sangue que os hospitais cessaram a coleta por falta de meios para armazená-la.
O segundo: embalados por rumores de que os hospitais precisavam de "doadores de pele" -uma generosidade que a medicina desconhece-, cerca de 50 voluntários se apresentaram para ceder um pedacinho de si próprios, para aliviar o sofrimento dos internados.
Os brasileiros foram encarregados de tratar de 11 pacientes internados na UTI do Instituto de Previdência Social. Estavam todos em coma. Três deles acordaram, mas os médicos evitavam fazer perguntas sobre a tragédia, diz o cirurgião Antônio Amary, 60.
Embora o detalhe fosse naquele momento irrelevante, acreditava-se que o incêndio tivesse sido provocado pela explosão de um botijão de gás, e não, conforme se descobriu em seguida, pela gordura acumulada numa das chaminés superaquecidas da lanchonete.

Suicídios
Histórias tétricas corriam entre os médicos estrangeiros. Uma delas ocorreu no Hospital Militar. Depois de perder no incêndio os pais e dois dos irmãos, um jovem de 20 anos foi visitar o terceiro irmão ainda internado. Mas ele acabava de morrer. Foi quando o sobrevivente se atirou de um dos andares superiores.
Teriam sido seis os suicídios de sobreviventes que não agüentaram o baque de perder a família.

Gratidão
O médico de origem paraguaia Pablo Enrique Palácios, 78, há 50 anos no Brasil, narra um episódio que exemplifica a gratidão das pessoas de lá para com os voluntários que daqui vieram.
"Fomos hospedados em um hotel perto do qual havia casebres humildes. Certa manhã, ao sairmos para o hospital, um grupo de mulheres se pôs a correr atrás de nossa van. Estavam com bandejas em que traziam bananas, laranjas e pastéis."
Foi Palácios quem teve a idéia de juntar uma equipe de voluntários entre seus companheiros de hospital. Um dia depois da tragédia ele contatou o cônsul do Paraguai em São Paulo. Que, por sua vez, obteve de presente da TAM as sete passagens aéreas.
Um dos hotéis de Assunção se prontificou a hospedar a equipe. Adiantou que a alimentação seria por conta da casa. E ainda colocou à disposição dos cinco médicos e dois enfermeiros uma van para o transporte pela cidade.

Equipamentos
Os brasileiros chegaram com dois dermátomos, aparelhos para tirar a pele, e um outro, Mesh Skin Graft, que expande a pele queimada a ser extraída. Os médicos alemães chegaram com respiradores, os americanos com pele cadavérica para enxerto.
A rotina era quebrada por informações curiosas. Segundo uma delas, relatada pelos jornais locais, a mulher do dono do supermercado -acusado de mandar trancar as portas do local durante o incêndio para evitar que as pessoas fugissem sem pagar- decidiu fazer uma reunião com seus funcionários. Foi acometida de uma crise depressiva, caiu no chão, machucou o rosto e deu entrada num dos hospitais em que estavam também internadas as vítimas do marido.
Mas imediatamente correu o rumor de que ela, na verdade, fora esbofeteada por empregados, carregados de sentimento de vingança por conta dos colegas mortos.

Rua morta
A cidade se acostumava com a situação de emergência. Já não havia mais o impacto imediato da carnificina. As narrativas chocantes, no entanto, ainda corriam.
"Foi tanta gente que morreu! Contaram que, em determinada rua das imediações do supermercado, num trecho de uma centena de metros, havia oito velórios de mortos pelo incêndio", diz a médica Maria Cláudia.
Palácios também traz histórias tristes. "Não é bem verdade que tenham morrido apenas pessoas mais pobres. Há o caso de um cidadão que entrou no supermercado para comprar pão que usaria como isca em pescaria. Quando saiu, encontrou a mulher e os dois filhos mortos e carbonizados dentro do carro", diz ele.
A temperatura subiu tanto, diz o médico, que parte dos que morreram era formada por pessoas que se encontravam na parte de fora do supermercado. Elas tentaram arrombar as portas que tinham sido fechadas por dentro.

Tapete humano
Dentro da praça de alimentação salvaram-se alguns dos pisoteados que ficaram paradoxalmente protegidos debaixo de um tapete da cadáveres humanos.
O médico Amary diz ter ouvido que os bombeiros demoraram mais de 40 minutos para chegar. Uma das primeiras iniciativas que tiveram foi a de arrebentar as paredes para permitir a entrada de oxigênio e para que os sobreviventes tivessem uma rota de fuga.
Amary, Palácios e Maria Cláudia também mencionam mortos que não apresentavam queimaduras. Haviam perecido porque, ao aspirarem o ar incandescente, haviam queimado por dentro as vias respiratórias.
O Hospital dos Defeitos da Face, de onde partiram os voluntários, foi aberto em 1966, num terreno de um quarteirão que hoje fica na avenida Rubem Berta.
Na época foi um evento e tanto. Não tanto em termos médicos. Mas porque, para arrecadar fundos para pagar as obras e comprar equipamentos, esteve em São Paulo, para três shows beneficentes, nada menos que Marlene Detriech (1901-1992), a atriz e cantora alemã, naturalizada americana, símbolo sexual de algumas gerações, desde que, em 1930, estrelou em "O Anjo Azul".


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