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AMÉRICA LATINA
Médicos brasileiros que ajudaram vítimas contam casos de desespero e solidariedade no incêndio do supermercado
Voluntários relatam tragédia no Paraguai
JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL
As imagens do incêndio que
consumiu um supermercado na
periferia de Assunção, em 1º de
agosto, e matou 369 pessoas comoveram o mundo. Mas poucos
viram a outra face comovente da
tragédia: o trabalho das equipes
voluntárias que atenderam os feridos. Uma delas era formada por
nove profissionais da equipe do
Hospital dos Defeitos da Face, de
São Paulo, que pertence à Cruz
Vermelha. Eles relataram sua terrível experiência à Folha.
"Doação de pele"
Houve, em primeiro lugar, a
forma superlativamente solidária
com que a população reagiu à tragédia. A cirurgiã plástica Maria
Cláudia Giometti, 33, deu dois
exemplos.
O primeiro: foi tão grande a
quantidade de doadores de sangue que os hospitais cessaram a
coleta por falta de meios para armazená-la.
O segundo: embalados por rumores de que os hospitais precisavam de "doadores de pele"
-uma generosidade que a medicina desconhece-, cerca de 50
voluntários se apresentaram para
ceder um pedacinho de si próprios, para aliviar o sofrimento
dos internados.
Os brasileiros foram encarregados de tratar de 11 pacientes internados na UTI do Instituto de Previdência Social. Estavam todos
em coma. Três deles acordaram,
mas os médicos evitavam fazer
perguntas sobre a tragédia, diz o
cirurgião Antônio Amary, 60.
Embora o detalhe fosse naquele
momento irrelevante, acreditava-se que o incêndio tivesse sido provocado pela explosão de um botijão de gás, e não, conforme se descobriu em seguida, pela gordura
acumulada numa das chaminés
superaquecidas da lanchonete.
Suicídios
Histórias tétricas corriam entre
os médicos estrangeiros. Uma delas ocorreu no Hospital Militar.
Depois de perder no incêndio os
pais e dois dos irmãos, um jovem
de 20 anos foi visitar o terceiro irmão ainda internado. Mas ele
acabava de morrer. Foi quando o
sobrevivente se atirou de um dos
andares superiores.
Teriam sido seis os suicídios de
sobreviventes que não agüentaram o baque de perder a família.
Gratidão
O médico de origem paraguaia
Pablo Enrique Palácios, 78, há 50
anos no Brasil, narra um episódio
que exemplifica a gratidão das
pessoas de lá para com os voluntários que daqui vieram.
"Fomos hospedados em um hotel perto do qual havia casebres
humildes. Certa manhã, ao sairmos para o hospital, um grupo de
mulheres se pôs a correr atrás de
nossa van. Estavam com bandejas
em que traziam bananas, laranjas
e pastéis."
Foi Palácios quem teve a idéia
de juntar uma equipe de voluntários entre seus companheiros de
hospital. Um dia depois da tragédia ele contatou o cônsul do Paraguai em São Paulo. Que, por sua
vez, obteve de presente da TAM
as sete passagens aéreas.
Um dos hotéis de Assunção se
prontificou a hospedar a equipe.
Adiantou que a alimentação seria
por conta da casa. E ainda colocou à disposição dos cinco médicos e dois enfermeiros uma van
para o transporte pela cidade.
Equipamentos
Os brasileiros chegaram com
dois dermátomos, aparelhos para
tirar a pele, e um outro, Mesh Skin
Graft, que expande a pele queimada a ser extraída. Os médicos alemães chegaram com respiradores, os americanos com pele cadavérica para enxerto.
A rotina era quebrada por informações curiosas. Segundo uma
delas, relatada pelos jornais locais,
a mulher do dono do supermercado -acusado de mandar trancar as portas do local durante o incêndio para evitar que as pessoas
fugissem sem pagar- decidiu fazer uma reunião com seus funcionários. Foi acometida de uma crise depressiva, caiu no chão, machucou o rosto e deu entrada num
dos hospitais em que estavam
também internadas as vítimas do
marido.
Mas imediatamente correu o
rumor de que ela, na verdade, fora
esbofeteada por empregados, carregados de sentimento de vingança por conta dos colegas mortos.
Rua morta
A cidade se acostumava com a
situação de emergência. Já não
havia mais o impacto imediato da
carnificina. As narrativas chocantes, no entanto, ainda corriam.
"Foi tanta gente que morreu!
Contaram que, em determinada
rua das imediações do supermercado, num trecho de uma centena
de metros, havia oito velórios de
mortos pelo incêndio", diz a médica Maria Cláudia.
Palácios também traz histórias
tristes. "Não é bem verdade que
tenham morrido apenas pessoas
mais pobres. Há o caso de um cidadão que entrou no supermercado para comprar pão que usaria
como isca em pescaria. Quando
saiu, encontrou a mulher e os dois
filhos mortos e carbonizados dentro do carro", diz ele.
A temperatura subiu tanto, diz
o médico, que parte dos que morreram era formada por pessoas
que se encontravam na parte de
fora do supermercado. Elas tentaram arrombar as portas que tinham sido fechadas por dentro.
Tapete humano
Dentro da praça de alimentação
salvaram-se alguns dos pisoteados que ficaram paradoxalmente
protegidos debaixo de um tapete
da cadáveres humanos.
O médico Amary diz ter ouvido
que os bombeiros demoraram
mais de 40 minutos para chegar.
Uma das primeiras iniciativas que
tiveram foi a de arrebentar as paredes para permitir a entrada de
oxigênio e para que os sobreviventes tivessem uma rota de fuga.
Amary, Palácios e Maria Cláudia também mencionam mortos
que não apresentavam queimaduras. Haviam perecido porque,
ao aspirarem o ar incandescente,
haviam queimado por dentro as
vias respiratórias.
O Hospital dos Defeitos da Face,
de onde partiram os voluntários,
foi aberto em 1966, num terreno
de um quarteirão que hoje fica na
avenida Rubem Berta.
Na época foi um evento e tanto.
Não tanto em termos médicos.
Mas porque, para arrecadar fundos para pagar as obras e comprar
equipamentos, esteve em São
Paulo, para três shows beneficentes, nada menos que Marlene Detriech (1901-1992), a atriz e cantora alemã, naturalizada americana,
símbolo sexual de algumas gerações, desde que, em 1930, estrelou
em "O Anjo Azul".
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