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CISMA DO OCIDENTE
De acordo com analistas, a atual política externa dos EUA originou seus problemas com a França e a Alemanha
Rixa transatlântica não deve ser duradoura
MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO
O presidente dos EUA, George
W. Bush, participa hoje da comemoração do 60º aniversário do
Dia D, o dia em que as forças aliadas desembarcaram na costa da
Normandia, na França, e busca,
em sua visita à Europa, iniciada
anteontem, aparar as arestas deixadas pela disputa diplomática
em torno da invasão do Iraque.
Ante esse quadro, a questão de
peso é saber se a contenda atual
terá impacto negativo sobre as relações transatlânticas no futuro.
De acordo com especialistas consultados pela Folha, o que mina
hoje os laços entre os EUA e a Europa é a atual política externa dos
EUA, não diferenças essenciais.
"O unilateralismo do governo
Bush mina as relações transatlânticas. Todavia, assim que essa linha da política externa americana
perder força, provavelmente com
a saída dos republicanos do poder, a situação melhorará, e os
americanos e europeus perceberão que têm mais a ganhar com a
manutenção de sua aliança histórica", analisou Ivo Daalder, que
foi membro do Conselho de Segurança Nacional dos EUA (1995-96) sob o comando do democrata
Bill Clinton (1993-2001).
"Rixas diplomáticas entre os
EUA e a Europa não são uma novidade. Na década de 60, o então
presidente francês, Charles de
Gaulle, bateu de frente com Washington várias vezes, mas a aliança não foi abalada fundamentalmente", acrescentou o co-autor
de "America Unbound: The Bush
Revolution in Foreign Policy"
(América sem amarras: a revolução de Bush na política externa).
De fato, a inserção da Europa,
ao lado da Rússia e da China, no
grupo de potências concorrentes
dos EUA na cena global, feita por
Bush em 2002, não agradou aos
europeus. Entretanto ainda mais
importante que isso foi o fato de
os EUA terem contornado a ONU
e invadido o Iraque sem a anuência da França e da Alemanha.
Para Michael Kreile, da Universidade Humboldt (Berlim), uma
mudança na política externa dos
EUA que desse ênfase a seu "soft
power" (influência ideológico-cultural sobre o restante do planeta) -em detrimento de seu "hard
power" (poder econômico-militar)- seria suficiente para mostrar à Europa que a aliança transatlântica não está perto do fim.
Mesmo assim, a longo prazo, as
perspectivas não são tão otimistas. Segundo Charles Kupchan,
do Council on Foreign Relations
(EUA), a situação é mais séria.
"As atitudes do governo Bush
mostraram à Europa que há diferenças cruciais entre seus interesses e os dos americanos. Os europeus, principalmente os franceses
e os alemães, perceberam que não
podem influenciar Washington e
tiveram de repensar o modo como agirão em relação aos EUA."
De acordo com Kupchan, isso
servirá para consolidar a UE, apesar das divisões atuais do bloco no
que concerne à política internacional. "Mesmo o Reino Unido, o
maior aliado geopolítico dos
EUA, notará que não tem muito a
ganhar com seu apoio aos EUA."
Kupchan acredita que mesmo a
Rússia já tenha compreendido
que uma aproximação com os
EUA não lhe renderia os frutos esperados. "Os russos fizeram várias concessões estratégicas para
aproximar-se dos americanos na
última década, no entanto nunca
foram tratados como parceiros.
Hoje eles percebem que a UE pode ser mais interessante do que
eles imaginavam", explicou.
Vale lembrar que o comércio internacional da Rússia apenas com
a Alemanha já se equipara ao que
ela tem com os EUA. Isso sem falar nos outros 24 membros da UE.
Charles Tilly, autor de "Dynamics of Contention " (dinâmica
da contenção), afirmou que o que
está em jogo é o "sistema multilateralista criado após a Segunda
Guerra". Os principais assessores
de Bush têm dificuldade em curvar-se às restrições impostas pelo
Conselho de Segurança da ONU,
o que faz que até os aliados dos
EUA "se sintam ameaçados". "Isso não significa, porém, que as diferenças sejam irreconciliáveis."
Ele salientou, assim, que os problemas atuais não são insuperáveis. "Recentemente, os EUA adotaram uma política suicida que visa garantir o fornecimento de petróleo e estabelecer uma hegemonia militar global", apontou Tilly.
"A médio prazo, o lado negativo
dessa política acabará minando
sua aplicação, e os EUA voltarão a
ter uma posição mais moderada,
fortalecendo sua cooperação com
a ONU e com a Europa. A longo
prazo, emergirá uma nova configuração político-econômica global, na qual o leste e o sul da Ásia
desempenharão um papel mais
importante do que hoje", disse.
Diante dessa análise, fica claro
que os EUA precisam fortalecer
seus laços com a Europa. A intenção de Bush de acatar exigências
internacionais para obter apoio
no Iraque já é um bom presságio.
Afinal, o Dia D, o maior ataque
militar aerotransportado da história, representou não apenas o
início da libertação européia do
jugo nazista mas também a consolidação de uma aliança que tem
servido de base para o desenvolvimento do Ocidente desde então.
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