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Bento 16 resgata tradicionalismo
Vinte anos após excomunhão de bispo anti-reforma, liturgia conservadora volta a dominar Santa Sé
Papa alemão apóia retorno à tradição como resistência à secularização e ressuscita o modelo de uma Igreja Católica mais autoritária
HENRI TINCQ
DO "LE MONDE"
Vinte anos atrás, em 30 de junho de 1988, o bispo francês
Marcel Lefebvre desafiou a autoridade do papa João Paulo 2º.
Em seu seminário de Ecône, na
Suíça, reduto do integrismo católico, consagrou quatro bispos
para garantir a continuidade da
"tradição" contra o concílio Vaticano 2º, que chamava abertamente de "herético".
Anos de discussões com a
Cúria romana (sobretudo com
Josef Ratzinger) foram jogados
por terra. Os fiéis se ajoelhavam, beijavam seus anéis. Ao
mesmo tempo, um decreto fulminante de Roma excomungava Lefebvre (morto em 1991) e
aqueles novos bispos, que passaram a ser "cismáticos" (frutos de um cisma).
Duas décadas mais tarde e
apesar dos fracassos sucessivos
das tentativas de "reconciliação" empreendidas por João
Paulo 2º e, sobretudo, por Bento 16, o tradicionalismo, se não
ganhou novos textos, conquistou mais espaço nas cabeças.
Enganaram-se aqueles -e
eram muitos, na época- que
interpretaram aquele episódio
dos clérigos de Ecône, 20 anos
atrás, como expressão de um
folclore superado, destinado à
lata de lixo da história, como
nostalgia beata do incenso, do
hábito e da missa em latim.
Os tradicionalistas continuam presentes. Majoritariamente francês em sua origem
-devido à nacionalidade de Lefebvre e às reações francesas
contra a liturgia moderna-, o
fenômeno ganhou mundo.
A fronteira está cada vez
mais porosa, com manifestações de fé e devoção encorajadas por Bento 16, por um clero
jovem e por comunidades "novas" que defendem o retorno à
tradição como modo de resistência à secularização.
Seminários da Fraternidade
Santa Pio 10, núcleo irredutível
do cisma, pipocaram na Alemanha, na Austrália, nos Estados
Unidos (no Minnesota) e na
América Latina. As gerações de
sacerdotes (quase 500) que
saem deles e de fiéis (600 mil,
segundo fonte do Vaticano)
herdeiros dessa dissidência
vêm se renovando e já se instalaram em mais de 30 países.
Antiecumenismo
Tipicamente europeu, esse
modelo de igreja autoritária,
antiecumênica e antimoderna,
dominada pela figura do santo
padre encarregado do sagrado,
foi exportado. Para os tradicionalistas, ele é o avalista dessa
parte de mistério, de emoção e
de beleza que é própria de toda
tradição e que a missa moderna
teria sacrificado.
Num mundo em explosão, o
latim reencontrou o lugar de
língua universal, e as concessões feitas às tradições culturais na Índia ou África empurrariam em direção à "tradição"
os fiéis ligados a uma liturgia e
um catecismo únicos.
Os tradicionalistas encontraram um aliado no papa alemão.
Os fiéis se espantam com as audácias cometidas por Bento 16
em matéria litúrgica, na contracorrente de toda uma evolução registrada desde o Vaticano
2º. O mestre de cerimonial de
João Paulo 2º foi substituído.
Bento 16 reinstaurou o trono
de cor púrpura, bordejado de
ouro, dos papas anteriores ao
concílio, renunciou ao "bastão
pastoral" de seus predecessores, símbolo de uma Igreja mais
humilde, e trouxe de volta a "férula" em formato de cruz grega
usada pelo papa mais reacionário do século 19 (Pio 9).
Bento 16 restaurou o costume da distribuição da hóstia de
joelhos e pela boca, "destinada
a tornar-se a prática habitual
das celebrações pontificais",
declarou no "L'Osservatore Romano" seu chefe de cerimonial,
monsenhor Guido Marini. A
França corre o risco de ficar estarrecida quando Bento 16 visitar o país, em setembro.
Um ano mais tarde, o decreto
papal de julho de 2007 liberalizando o rito antigo em latim
certamente não provocou manifestações acaloradas. Na
França, esse chamado em favor
da "missa antiga" teria sido ouvido por apenas 0,1% dos fiéis.
O número de paróquias em que
ela é celebrada há um ano não
passa de 40, somada às 132 que
já a propunham.
Mas os tradicionalistas não
desistiram de sua guerra insidiosa contra os bispos, os padres e a Cúria "modernistas".
Eles rejeitaram o protocolo de
acordo proposto por Roma para solucionar o cisma, que lhes
exigia apenas que se comprometessem a respeitar a autoridade e a pessoa do papa.
Vítima de um jogo interminável de disputas, Bento se viu
pressionado a anular as excomunhões de junho de 1988 e
atribuir aos padres tradicionalistas um estatuto sob medida
de "prelado nullius", que lhes
garantiria a vantagem dupla de
serem reconhecidos por Roma
e se manterem independentes
dos bispos.
Seria realmente esse o papa
que nunca teria conseguido libertar-se de seu modelo bávaro, cujo cotidiano girava em
torno da missa, da família, do
Angelus dos campos e da música das cidades?
É duro imaginar que esse filósofo que dialogou com figuras
do pensamento laico (Florès
d'Arçais na Itália, Habermas na
Alemanha), que orou numa
mesquita (em Istambul), visitou sinagogas, escreveu encíclicas em tom moderno sobre o
amor, possa amanhã abrir a
porta aos cismáticos de 1988.
Em todas as religiões, a liturgia é a expressão de uma fé. Ela
não pode ser dissociada da doutrina. Acontece que a direção
foi determinada há mais de 40
anos, no concílio Vaticano 2º,
mantido por Paulo 6º e João
Paulo 2º. Hoje, reina em Roma
um neoconservadorismo incentivado não tanto pelo papa
quanto por grupos que nunca
renunciaram à igreja autoritária do passado. A reintegração
dos cismáticos corre o risco de
ser efetuada ao preço de uma
erosão das conquistas dos últimos 40 anos. Seria o triunfo
póstumo de Lefebvre.
Tradução de CLARA ALLAIN
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