|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Religiosa, Uganda usa moralismo contra a Aids
Estratégia "ABC" aposta em abstinência, fidelidade e, em terceiro lugar, camisinha
Governo diz que campanha levou taxa de contaminação de 30% nos anos 1980 a 7% hoje; poderio das igrejas e dinheiro dos EUA são armas
FÁBIO ZANINI
EM CAMPALA (UGANDA)
A missa na minúscula igreja
com telhado de zinco e meia
dúzia de bancos de madeira numa rua de terra em Campala está começando, e Louis Kermu,
27, sobe ao púlpito improvisado para dar seu testemunho.
"Agradeço a Deus por me ajudar a continuar sexualmente
puro. Não é fácil. Onde eu moro, as pessoas da minha idade
ouvem músicas com referências sexuais que me tentam.
Mas eu sigo acreditando." Seguem-se aplausos.
Todos os dias em Uganda,
discursos como esse fazem
apologia da abstinência sexual,
uma estratégia abraçada pelo
governo com ajuda das igrejas e
financiamento do governo norte-americano e elevada a carro-chefe da política anti-Aids.
Nos últimos 20 anos, o país
de 30 milhões de habitantes no
centro da África conseguiu diminuir significativamente a incidência da doença, de uma maneira que passa longe da abordagem tradicional.
As estatísticas oficiais falam
em uma redução de 30% da população contaminada no final
dos anos 80 para pouco mais de
7% atualmente. O percentual
ainda é alto para padrões internacionais, e chegou a apresentar uma leve alta nos últimos
anos, mas é um caso raro no
continente mais afetado pela
doença no mundo.
Países como África do Sul,
Suazilândia, Botsuana, Zâmbia
e Zimbábue, entre outros, há
anos tentam em vão reduzir índices de contaminação que
chegam a quase 40%.
A abordagem ugandense é
polêmica e assumidamente
moralista. Em vez de massificar o uso de camisinhas, método adotado por vários países e o
preferido das organizações internacionais, investe-se na mudança de comportamento.
A estratégia surgiu nos anos
80 em círculos cristãos norte-americanos, mas foi em Uganda que ela adquiriu proporções
de política de Estado.
Desde 1986, o governo adota
a política batizada de ABC: A de
abstinência, dirigida aos jovens
solteiros; B de "be faithful" (seja fiel), para os casados; C de
"condom", camisinha, para
quem não seguir as anteriores.
Mas, como explica James Kigozi, diretor de Comunicação
da Comissão de Aids de Uganda, órgão oficial que trata da
epidemia, as letras têm peso diferente. "A ordem em que elas
estão é importante. Nossa estratégia é um pacote em que as
camisinhas são apenas a terceira escolha", afirma ele.
Segundo as estatísticas oficiais, apenas 25% da população
sexualmente ativa nas áreas urbanas usa com regularidade a
camisinha. Nas áreas rurais,
onde vivem 80% das pessoas, o
índice cai para perto de zero.
O governo não faz questão
nenhuma de elevar esses números. Tanto que a previsão do
Programa da ONU para o Desenvolvimento em Uganda é de
que faltarão preservativos no
país para distribuição gratuita a
partir de outubro, devido a cortes no orçamento para importação das camisinhas.
Pelas ruas de Campala e pelas estradas do país, grandes
outdoors patrocinados pelo governo divulgam o enfoque moralizador. Uma peça mostra
três garotas vestidas para uma
formatura universitária, dizendo: "Só chegamos tão longe
porque nos abstivemos".
Outra é destinada a combater
o sexo entre garotas e homens
mais velhos, uma grande fonte
de disseminação da Aids, segundo o governo. "Você deixaria este homem ficar com sua
filha adolescente?", diz o cartaz, ao lado da foto de um senhor de meia idade. "Então, por
que você está com a dele?".
Pulsão religiosa
A política do ABC sobrevive
há mais de duas décadas em
grande parte porque foi encampada com entusiasmo pelas
igrejas. Em Uganda, 42% da população é católica, e percentual
igual é evangélico.
O presidente, Yoweri Museveni, no poder desde 1986, é um
ex-guerrilheiro marxista que se
diz um "renascido cristão", assim como seu colega norte-americano, George Bush. A primeira-dama, Janeth, tem uma
ONG que promove a abstinência. O dinheiro dos EUA, US$ 2
bilhões nos últimos dez anos,
vem com a condição de ser usado para promover abstinência.
"O governo sabe que as igrejas são uma força moral poderosa em Uganda, quase invencível, e decidiu trabalhar com
elas", afirma Paddy Musana,
estudioso de questões religiosas da Universidade Makerere.
Não por acaso, o presidente da
comissão oficial de combate à
Aids, que inclui representantes
da sociedade, é um bispo católico aposentado.
O governo usa também como
argumento o que chama de "fatores culturais" do povo de
Uganda. "A sociedade africana
tem uma tradição de poligamia.
É socialmente aceito", diz Kigozi. Por isso, diz ele, a letra B
na tríade do ABC também é valorizada. Para muçulmanos
(12% da população), há uma peculiaridade. O recado é: "seja
fiel a todas as suas mulheres".
Além disso, segundo o governo, o ugandense nas áreas rurais, onde vive a maioria da população, tem pouca informação
e acesso à camisinha.
"Eles não sabem usar e não
têm dinheiro para comprar. As
pessoas bebem, se divertem e
esquecem de usar a camisinha", afirma Kigozi.
Texto Anterior: Frases Próximo Texto: Jovens celebram "contratos" de abstinência com pastor pop Índice
|