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ARTIGO
Passado traçou mentalidade política única
Leia a seguir a continuação do
artigo de Jacques Derrida e de Jürgen Habermas.
O apaziguamento das oposições
de classe sob o Estado social e a
autodelimitação da soberania estatal no quadro da União Européia são apenas os exemplos mais
recentes. No terceiro quarto do
século 20, a Europa viveu, do lado
de cá da Cortina de Ferro, sua "era
dourada", segundo as palavras de
Eric Hobsbawm. Desde então, os
traços de uma mentalidade política comum se tornaram reconhecíveis, de sorte que é frequente os
outros perceberem em nós antes
o europeu do que o alemão ou o
francês, e isso não apenas em
Hong Kong, mas até em Tel Aviv.
É realmente verdade: nas sociedades européias, a secularização
progrediu relativamente bem.
Aqui os cidadãos observam as
transgressões dos limites entre
política e religião antes de tudo
com suspeita. Os europeus possuem uma confiança relativamente grande nas operações de
organização e nas capacidades de
controle do Estado, ao passo que
são céticos em relação à capacidade de realização do mercado. Eles
possuem uma sensibilidade acentuada para a "dialética do esclarecimento"; não nutrem expectativas otimistas infrangíveis em face
dos progressos técnicos. Têm preferências pelas garantias de seguridade do Estado de Bem-Estar
Social e pelas regulações solidárias. O limiar da tolerância para
com o exercício de violência contra as pessoas é relativamente baixo. O desejo de uma ordem internacional multilateral e juridicamente regulada se vincula à esperança de uma efetiva política interna mundial no quadro de uma
ONU reformada.
A constelação que permitiu aos
europeus ocidentais favorecidos
desenvolver uma tal mentalidade
nas sombras da Guerra Fria se desintegrou desde 1989-90. Mas o 15
de fevereiro mostra que a própria
mentalidade sobreviveu a seu
contexto de origem. Isso explica
também por que a "velha Europa" se vê desafiada pela política
hegemônica enérgica da superpotência aliada. E por que tantos na
Europa que saúdam a queda de
Saddam como libertação rejeitam
o caráter contrário ao direito internacional da invasão unilateral,
preventiva, justificada de maneira
tão confusa quanto insuficiente.
Porém quão estável é essa mentalidade? Ela tem raízes em experiências históricas e tradições de
maior profundidade?
Hoje nós sabemos que muitas
tradições políticas que reclamam
autoridade na ilusão de sua naturalidade foram "inventadas". Em
contraposição, uma identidade
européia, que nasceria à luz da esfera pública, teria desde o começo
algo de construído. Mas somente
algo construído a partir do mero
arbítrio traria a mácula da arbitrariedade. A vontade ética e política
que se faz valer na hermenêutica
dos processos de auto-entendimento não é arbítrio. A distinção
entre o legado que nós queremos
assumir e o que queremos rejeitar
requer tanta cautela quanto decisão a respeito da versão em que
nós nos apropriamos dele. Experiências históricas são candidatas
somente para uma apropriação
consciente, sem a qual elas não alcançariam uma força capaz de
formar a identidade. Para concluir, algumas rubricas sobre esses "candidatos", à luz dos quais a
mentalidade européia poderia
obter um perfil mais nítido.
Raízes históricas
Na Europa moderna, aquém e
além dos Pirineus, ao norte e ao
sul dos Alpes, a oeste e a leste do
Reno, a relação entre Estado e
igreja se desenvolveu de maneira
diversa. A neutralidade do poder
estatal quanto às visões de mundo
assumiu em diversos países europeus uma figura jurídica diferente
em cada caso. Mas, no interior da
sociedade civil, a religião acabou
ocupando em toda parte uma posição não-política análoga. Mesmo que se possa lamentar essa
privatização social da fé sob outros aspectos, ela tem uma consequência desejável para a cultura
política. Em nossas longitudes, é
difícil imaginar um presidente
que começa suas atividades diárias com uma oração pública e
vincula suas decisões políticas repletas de consequências a uma
missão divina.
A emancipação da sociedade civil da tutela de um regime absolutista não esteve em toda parte da
Europa entrelaçada com a tomada de posse e com a transformação democrática do Estado administrativo. Mas a irradiação ideal
da Revolução Francesa pela Europa inteira explica, entre outras
coisas, por que a política assumiu
positivamente uma dupla forma
tanto como meio de segurança da
liberdade quanto como poder de
organização. Em contrapartida, a
imposição do capitalismo esteve
ligada a fortes oposições de classes. Essa lembrança impede uma
apreciação igualmente imparcial
do mercado. A distinta avaliação
de política e mercado pode fortalecer os europeus em sua confiança no poder de configuração civilizadora de um Estado do qual
eles esperam também a correção
das "falhas do mercado".
O sistema partidário proveniente da Revolução Francesa foi frequentemente copiado. Mas só na
Europa ele serve também a uma
concorrência ideológica que submete as consequências sociopatológicas da modernização capitalista a uma avaliação política contínua. Isso estimula a sensibilidade dos cidadãos para os paradoxos do progresso. No conflito das
interpretações conservadoras, liberais e socialistas, trata-se de pesar dois aspectos: as perdas que
ocorrem com a desintegração das
formas de vida tradicionais e protetoras superam os ganhos de um
progresso quimérico? Ou os ganhos que hoje os processos de
destruição criativa colocam em
perspectiva para o amanhã superam as dores dos que perdem
com a modernização?
Na Europa, as diferenças de
classe, com efeitos duradouros,
foram experienciadas pelos atingidos como um destino que somente pôde ser evitado mediante
uma ação coletiva. Desse modo,
no contexto dos movimentos
operários e das tradições sociais
cristãs, um ethos solidarista da luta por "mais justiça social", objetivando um sustento simétrico, se
impôs contra um ethos individualista da justiça por produtividade que aceita desigualdades sociais crassas.
A Europa hodierna foi marcada
pelas experiências dos regimes totalitários do século 20 e do holocausto, a perseguição e aniquilação dos judeus europeus, no qual
o regime nazista emaranhou também as sociedades dos países conquistados. As discussões e autocríticas acerca desse passado acabaram recordando os fundamentos morais da política. Uma elevada sensibilidade para as violações
da integridade pessoal e da corporal se reflete, entre outras coisas,
no fato de o Conselho Europeu e a
União Européia terem colocado
como condição de ingresso a renúncia à pena de morte.
Um passado belicista enredou
outrora todas as nações européias
em confrontos sangrentos. Após a
Segunda Guerra Mundial, tirou-se das experiências contrárias de
mobilização militar e mobilização
intelectual a consequência de desenvolver novas formas supranacionais de cooperação. A história
bem-sucedida da União Européia
fortaleceu os europeus na convicção de que a domesticação do
exercício do poder estatal requer
também no plano global uma restrição mútua dos espaços soberanos de ação.
Cada uma das grandes nações
européias vivenciou o florescimento do poder imperial e, o que
é mais importante em nosso contexto, teve de assimilar a experiência da perda de um império.
Essa experiência da queda se liga
em muitos casos à perda de impérios coloniais. Com a distância cada vez maior da dominação imperial e da história colonial, as potências européias receberam também a chance de tomar uma distância reflexiva de si próprias. Assim elas puderam aprender a perceber a si mesmas, da perspectiva
dos vencidos, no papel duvidoso
dos vitoriosos que teriam de prestar contas pela forma de uma modernização autoritária e desarraigadora. Isso poderia ter nutrido a
recusa do eurocentrismo e estimulado a esperança kantiana de
um política interna mundial.
Texto publicado originalmente nos jornais "Frankfurter Allgemeine" e "Libération" em dia 31 de março.
Tradução de Luiz Repa
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