São Paulo, domingo, 08 de dezembro de 2002

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AMÉRICA LATINA

O médico Oscar Elías Biscet, punido por "desrespeito" à bandeira do país, relata o drama dos dissidentes detidos

Preso cubano revela os porões da ditadura

Cristobal Herrera - 9.set.2002/Associated Press
Fidel faz pausa durante discurso no teatro Karl Marx, em Havana




Presos que faziam algo considerado mais grave eram privados de alimentação e de sono


Enquanto o povo morre de fome, Fidel tem uma vida confortável. Ele tem vinhos caríssimos em sua mesa


MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

Os presos cubanos -políticos ou não- estão sujeitos a humilhações cotidianas, sendo privados de alimentação e de água potável, além de serem agredidos física e psicologicamente.
A afirmação é do cubano Oscar Elías Biscet, 41, médico generalista, defensor dos direitos humanos e crítico do regime de Fidel Castro. Ele passou quase três anos na prisão por ter colocado duas bandeiras de Cuba de cabeça para baixo durante uma entrevista. Foi libertado em 31 de outubro.
Leia a seguir trechos de sua entrevista, por telefone, à Folha.


Folha - Qual é a situação dos "presos de consciência" e dos presos em geral em Cuba?
Oscar Elías Biscet -
A situação é muito desagradável, chegando a ser humilhante, pois eles foram privados de todos os direitos fundamentais. Isso sem separar os que cometeram um delito dos que são presos políticos. Todos recebem o mesmo tratamento.
Os que cometeram uma indisciplina social devem ser sancionados, mas os presos políticos vão para a cadeia por falar. Os chamados "presos de consciência" estão detidos por exercer seu direito à liberdade [de expressão".
Porém, além de terem sua liberdade limitada, os presos são mal alimentados, não têm lugar para dormir adequadamente e não bebem água potável. Não há duchas nos banheiros nem bebedouros nos refeitórios. A primeira coisa que os carcereiros fazem é roubar os prisioneiros, que, aliás, não têm o direito de utilizar o telefone.

Folha - Há tortura física?
Biscet -
Na verdade, não vi tortura física. Mas ouvi comentários de pessoas que diziam ter sido torturadas. Quando estava detido, tive o braço queimado com um cigarro uma vez. Ou seja, sim, sei que que os presos são agredidos.
Todavia a principal tortura em Cuba não é a física, como arrancar as unhas ou machucar os olhos dos presos, mas é a tortura psicológica, embora, é verdade, parte dessa tortura esteja relacionada a castigos físicos.
Lembro-me de um centro de detenção em que estive durante quatro meses, no qual os prisioneiros eram punidos tanto física quanto psicologicamente, sendo colocados com roupas leves numa sala com ar-condicionado ligado. Também deixavam os presos que cometiam atos de indisciplina sem roupas nem água.
Além disso, presos que faziam algo considerado mais grave eram privados de alimentação e de sono, pois os carcereiros não os deixavam dormir durante a noite. Essa é uma das torturas físicas que mais abalam o lado psicológico. Mas, quando estava preso, não vi esse tipo de tortura, apenas ouvi falar que isso era feito. Vi algumas agressões e muitos abusos, mas não esse tipo de tortura.

Folha - Como os cubanos poderão obter sua liberdade?
Biscet -
Com muito trabalho. Acabamos de criar o Clube dos Amigos dos Direitos Humanos. Esse clube tem por vocação reunir as pessoas para ensinar-lhes o que são os direitos humanos e como conquistá-los por meio de métodos de luta não-violentos.
Quando tivermos o povo de nosso lado, faremos o que tem sido feito na Venezuela. Pensamos em fazer o que faz a oposição venezuelana atualmente, ou seja, protestos pacíficos para conquistar nossos direitos. Isso não pode ser pedido nem mendigado. É preciso exigir os direitos dos cidadãos, é preciso conquistá-los. Poderemos fazer isso quando o povo cubano estiver do nosso lado.

Folha - Quantas pessoas já fazem parte desse clube?
Biscet -
Trata-se de um trabalho que acaba de começar, pois deixei a prisão há um mês. Mesmo assim, há muitas células do clube que já foram formadas, algo em torno de seis ou sete em um mês, o que não é pouco.
Na verdade, trabalharei bastante com essa idéia a partir de janeiro. Esse é um trabalho que leva tempo, visto que temos de formar vários clubes, chegando a englobar milhares de pessoas.
Tudo isso é demorado porque as pessoas têm de ser convencidas a aderir a nossos esforços, depois devem ser treinadas e preparadas para a luta. Com isso, deveremos esperar algum tempo para observar algum resultado positivo.
Também não sei quanto tempo. Penso que os resultados serão positivos em breve. Talvez, em pouco tempo, façamos uma nova entrevista para discutir como foi a transição e a transformação de Cuba num país livre.

Folha - O sr. disse que pretende seguir o exemplo da oposição venezuelana. Há semelhança entre Hugo Chávez e Fidel?
Biscet -
Sim, claro. Quando Chávez era candidato à Presidência, eu afirmei que ele era um comunista que levaria seu país à guerra, como fez Fidel. E, efetivamente, a evolução da situação venezuelana mostrou que eu tinha razão.
Chávez é um comunista disfarçado em social-democrata. Assim, se o povo venezuelano não se sublevar contra isso agora, o país acabará tendo um comunismo totalitário parecido com o que existe em Cuba. Ainda bem que o mundo mudou, e já não é possível fazer o que Fidel fez aqui em 1959, pois o povo tomou consciência e sabe que o comunismo é um sistema inadequado e injusto.

Folha - Quais são as perspectivas para os cubanos nos próximos cinco ou dez anos?
Biscet -
Penso que, se tivermos de esperar tanto tempo, estaremos todos mortos, visto que a situação é insuportável. Há uma crise econômica, política e moral sem precedente, que torna a situação insustentável. O povo cubano não tem o que comer; então a imoralidade está em todos os lados, sobretudo no governo.
Os cubanos não têm acesso nem a programas de televisão nos quais riqueza e prosperidade são mostradas. Enquanto o povo morre de fome, Fidel tem uma vida confortável. Ele diz que é pobre, mas tem vinhos caríssimos em sua mesa. O povo, porém, não sabe disso porque não tem acesso a essas informações. Quando as pessoas souberem todos os detalhes da imoralidade que reina no governo, haverá uma revolução.

Folha - Quando isso ocorrerá?
Biscet -
Não posso falar em datas, mas creio que isso não venha a demorar, pois há muito descontentamento entre os cubanos. Hoje a população ainda está intimidada. O que as pessoas dizem em público não tem nada a ver com o que elas dizem em suas casas.
No sistema atual, a esfera privada e a pública tornaram-se muito distantes por conta do medo. Mas esse medo está acabando porque a situação piora cotidianamente. Muita gente já não coopera com o governo. Com o passar do tempo, o desgosto aumenta, fazendo com que a força do governo diminua.
Acredito que se trate de um processo que se está acelerando. Acho que a liberdade vá chegar logo. Não sei quanto tempo isso levará, porém, indubitavelmente, não demorará cinco anos.

Folha - O que pode fazer a comunidade internacional?
Biscet -
Nos anos 80, a África do Sul do apartheid foi alvo de um severo embargo internacional. Esse embargo mostrou que a luta pela liberdade ganha muito mais força quando acompanhada de sanções internacionais, que minam o poder dos opressores.
Muitos governos ajudam o regime de Fidel, pois lhe dão dinheiro para manter o sistema, permitindo que seus cidadãos viajem a Cuba. Esses governos lhe dão oxigênio para manter-se no poder. Também é por isso que a liberdade continua limitada em Cuba.
O embargo dos EUA é positivo, porém todas as nações devem aderir a ele para enfraquecer o regime cubano. Sem o embargo americano, provavelmente não estivéssemos conversando agora, visto que Fidel teria ainda mais dinheiro para equipar seu Exército e para manter-se no poder, calando todas as formas de oposição.


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