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São Paulo, domingo, 09 de março de 2003

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ARTIGO

Brasil deveria apoiar resolução com ultimato a Bagdá

ALFREDO VALLADÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nesta altura da crise iraquiana, é cada vez mais fútil tentar atribuir responsabilidades por esta quase implosão do sistema internacional. Os candidatos são muitos.
Saddam Hussein, é claro, que vem desacatando o Conselho de Segurança (CS) da ONU há mais de uma década, ignorando abertamente 16 resoluções, expulsando os inspetores e resguardando os seus programas armamentistas.
Mas também George Bush pai, que, por cálculo geopolítico, decidiu manter no poder o tirano de Bagdá em 1991, e a arrogância, alimentada pelo pânico provocado nos EUA pelos atentados de 11 de setembro de 2001, do filho, que quer agora terminar o serviço. Sem esquecer a França e a Rússia, que apóiam fielmente o regime iraquiano desde os anos 70 e que, no passado, prestaram uma ajuda militar consequente a Saddam.
Acrescente-se uma pitada de interesses petroleiros -americanos, ingleses, franceses, russos e chineses- e o acanhamento da comunidade internacional, particularmente de todos os membros do CS (permanentes ou não, incluindo o Brasil), que, nos últimos 12 anos, toleraram tranquilamente que uma das ditaduras mais sanguinárias e perigosas do planeta desafiasse impunemente todos os fundamentos da legalidade internacional, sem falar na Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Mas não adianta chorar pelo leite derramado. A omissão ou a cumplicidade geral estava se tornando insustentável. Legítima ou não, a mobilização americana contra Saddam já criou uma nova situação. O que está em jogo é nada menos do que o próprio princípio do multilateralismo nas relações internacionais, a relevância da ONU, o diálogo e a cooperação entre os Estados democráticos, o futuro do mercado mundial do petróleo, a estabilidade econômica e a segurança do planeta.
A equação política do momento é relativamente simples: encontrar uma solução que evite, se possível, a guerra, mas que represente também uma derrota para Saddam. Permitir que o regime iraquiano continue driblando os inspetores por meses e meses a fio ou, hipótese pouco provável, conseguir que os EUA retirem suas tropas, deixando tudo como está, seria um desfecho que teria sérias consequências para a estabilidade e a legitimidade das instituições e do sistema internacional.


Bush não espera apoio concreto do Brasil, mas não deixará de reagir negativamente a uma oposição frontal

Saddam, visto como vitorioso, representaria o melhor dos incentivos para todos os regimes ditatoriais do planeta. Seria uma prova viva de que é possível e até recomendável tentar dotar-se de armas de destruição em massa e manter regimes de terror contra a própria população. Esse sentimento de impunidade abriria caminho para novas corridas armamentistas no Oriente Médio, na Ásia Central ou na Ásia-Pacífico.
Confrontados com um Saddam Hussein triunfante e com a impotência da comunidade internacional, o Irã, o Paquistão, a Índia, o Egito e, provavelmente, até a Turquia (sem mencionar os vizinhos da Coréia do Norte) seriam compelidos a correr atrás de armas de destruição em massa.
Esse clima de insegurança geral teria repercussões econômicas catastróficas, sobretudo para os países em desenvolvimento ou emergentes, como o Brasil. A aversão ao risco dos investidores, as incertezas do mercado petrolífero e os custos da corrida armamentista seriam muito maiores e profundos do que no caso de uma guerra americana contra o Iraque.
Além disso, Saddam "vitorioso" seria transfigurado em herói da juventude árabe, acentuando ainda mais o divórcio entre a "rua" árabe e os regimes locais considerados traidores. Pior ainda, a demissão da comunidade internacional frente à ditadura de Bagdá viria reforçar a percepção das populações de que as grandes potências democráticas são, de fato, cúmplices dos odiados regimes autoritários.
Basta ler os pronunciamentos de Osama bin Laden para constatar que, para ele, o inimigo principal é a monarquia saudita e não os EUA, considerados simples "infiéis" que ocupam a Terra Santa do islã para manter os Saud no poder. Uma vitória de Saddam iria convencer uma geração inteira de jovens árabes a lançarem-se na aventura do terrorismo.
Presentear Saddam Hussein nem que seja com uma aparência de vitória seria um golpe terrível à credibilidade do CS, algo tão funesto quanto uma invasão unilateral do Iraque pelos EUA.
O problema é que o debate entre as grandes potências resvalou para a incontinência verbal, com propostas que ameaçam diretamente o sistema internacional ou carecem de credibilidade: a ação militar sem respaldo da ONU, a utilização do veto no CS ou um prolongamento das inspeções sem nenhum instrumento de pressão suficiente para garantir que Saddam vai cooperar.
Não é possível aceitar que a administração Bush se arvore em justiceira solitária, mas também não é possível sacrificar o CS e as indispensáveis cooperação e unidade das democracias do planeta para salvar um tirano sanguinário em apuros.
O Brasil, obviamente, não pode se furtar a tomar posição. O Iraque não é uma questão exótica, alheia a preocupações mais prementes como o desenvolvimento econômico nacional. Quanto mais longa for uma guerra no Oriente Médio -com seus possíveis contrachoques terroristas-, mais forte será o impacto na economia mundial, na percepção do risco pelos investidores ou no comércio internacional.
Nenhum país do mundo, sobretudo os emergentes, pode fingir-se indiferente às ameaças à estabilidade dos preços e às quantidades disponíveis de petróleo. O Brasil, com sua vulnerabilidade financeira, encontra-se na primeira linha de fogo e já vem sentindo claramente os efeitos da crise. Além disso, a prioridade do desenvolvimento interno será também afetada por outro fator crucial: as relações com os EUA.
Um bom entendimento com Washington é a condição necessária -mesmo que seja insuficiente- para continuar mantendo a confiança dos mercados e dos organismos financeiros internacionais. George W. Bush não espera nenhum apoio concreto por parte do Brasil na sua campanha contra o Iraque, mas certamente não deixará de reagir negativamente a uma oposição frontal -ou positivamente no caso de um posicionamento construtivo.
Atualmente, o Brasil -sorte ou azar- não faz parte do CS e poderá, portanto, tentar ficar em cima do muro. Mas, além de essa atitude não se enquadrar na visão de uma política exterior "pró-ativa" promovida pelo governo Lula, resta saber se ela será suficiente.
O país não tem meios militares ou diplomáticos importantes e tem muito a perder com os desdobramentos da crise. Nas condições atuais de vulnerabilidade, o Brasil tem pouca escolha. A curto prazo, deverá tentar contribuir para evitar um conflito armado no Iraque e seus catastróficos efeitos sobre a economia nacional. Mas esses efeitos serão os mesmos se não houver uma solução rápida para a crise iraquiana e a incerteza permanecer como está. A longo prazo, o interesse brasileiro é promover o multilateralismo, o respeito pela democracia e pelos direitos humanos (incluindo os do povo iraquiano) e a legitimidade das Nações Unidas.
A realidade, no entanto, é que a guerra vai acontecer se não for encontrada uma solução que garanta realmente o desarmamento do Iraque (só com muita fé ingênua e muita inocência é possível acreditar que o tirano de Bagdá não escondeu armas que tenta obter há décadas). Se Saddam estivesse disposto a cooperar com a ONU, o problema seria resolvido em dias, e não meses. Mas por que o regime iraquiano continua não acatando plenamente a última resolução do CS, apesar de estar sendo pressionado pelos mais de 200 mil homens das Forças Armadas americanas?

Hoje, fixar a data de uma guerra anunciada é, sem dúvida, a melhor maneira de dar uma chance à via pacífica

Na verdade, só uma ameaça de intervenção crível fez com que Saddam aceitasse a volta dos inspetores, e só outra ameaça equivalente, mas dessa vez com data e hora para acontecer, pode convencê-lo a colaborar com as inspeções.
Mas entregar e destruir as suas armas seria um golpe mortal ao regime, que perderia imediatamente a sua imagem de "vítima" da arrogância americana e apareceria como é na verdade: um poder mentiroso e perigosíssimo para a região e para o mundo.
Para garantir que Saddam não recomeçasse logo que as tropas americanas voltassem para casa, seria, portanto, indispensável um controle interno permanente do regime. Sem tropas armadas, se possível da ONU, ocupando o país, esses controles não terão nenhuma credibilidade. Só que isso significa, de fato, o fim do regime fundado no terror e na repressão de massa. A mudança de regime no Iraque é inevitável e indispensável para resolver a crise, e só depende de Saddam que essa mudança seja pacífica ou não.
Somente uma posição firme, agregando o maior número possível de países (incluindo os EUA) teria uma chance de salvar uma solução pacífica ou, caso Saddam se recuse a colaborar e a se desarmar, daria a legitimidade necessária para uma intervenção armada.
Se o Brasil pretende colaborar com uma solução pacífica rápida que mantenha também a legitimidade e o papel da ONU, ele deveria associar-se ativamente aos que propõem uma nova resolução que estabeleça uma data-limite para que o regime iraquiano acate plenamente as decisões das Nações Unidas e responsabilizar-se pelo uso legítimo da força coletiva caso seja necessária. Mas também deveria promover, paralelamente, a idéia de criar uma força armada da ONU capaz de intervir no Iraque para garantir um desarmamento duradouro e a liberdade e os direitos do povo iraquiano. Sem isso, a alternativa será o unilateralismo americano. É paradoxal, mas, hoje, fixar a data de uma guerra anunciada é, sem dúvida, a melhor maneira de dar uma chance à via pacífica. Mas a bola está com Saddam.

Alfredo Valladão é responsável pela cátedra Mercosul no Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences Po) e autor de "Le Triangle Atlantique" (o triângulo atlântico, 1999), entre outras obras


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