São Paulo, domingo, 10 de outubro de 2004 |
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ELEIÇÃO NOS EUA Para o reputado jornalista Bob Woodward, percepção popular dos candidatos não corresponde aos fatos "Kerry não é covarde e Bush não é estúpido"
MÁRCIO SENNE DE MORAES |
Folha - O que o motivou a escrever "Plano de Ataque"?
Bob Woodward - Queria mostrar
ao povo americano o que realmente ocorreu. Há tantas coisas
escondidas, tanto segredos, que é
muito difícil entender o que se
passou durante as reuniões na Casa Branca, que contaram com a
presença de funcionários da CIA
[agência de inteligência] e do Departamento de Estado, além do
comando militar. Assim, busquei
expor uma visão íntima sobre o
modo como Bush decidiu ir à
guerra contra Saddam.
Com isso, as pessoas podem ter
uma noção mais clara sobre quem
ele é como presidente e quais são
seus valores vitais. A maneira como as pessoas reagem ao livro é
interessante, pois alguns pensam
que Bush é um presidente bastante determinado e concentrado em
seu trabalho e outros crêem que o
livro mostre que sua administração é um desastre.
Folha - Alguns críticos dizem,
contudo, que seu livro é menos incisivo que "Cadeia de Comando",
do jornalista Seymour Hersh, que,
em abril, detalhou os horrores
ocorridos na prisão iraquiana de
Abu Ghraib, no que tange a críticas
a Bush. Como o sr. vê essa análise?
Woodward - Trata-se de livros
totalmente diferentes, com objetivos distintos. "Plano de Ataque" é
sobre o que fizeram as autoridades responsáveis pela tomada de
decisões, sobretudo o presidente.
Não acredito que Hersh tente dizer muito sobre as ações do presidente que levaram à guerra.
Folha - Quais são os valores de
Bush que o sr. tentou explicitar?
Woodward - O que quis mostrar
em meu livro é que as ações de um
presidente dependem muito de
seu caráter. Podemos dizer que a
história de 16 meses de preparativos militares, de operações secretas da CIA e de diplomacia na
ONU tem muita relação com a
personalidade de Bush.
Há muitas histórias interessantes. Por exemplo, Powell disse ao
presidente que, se invadissem o
Iraque, os EUA seriam responsáveis pela situação em que o país ficaria após a deposição de Saddam. Muitos analistas dizem que,
naquele momento, o presidente
deveria ter abandonado sua intenção de invadir o país, mas sabemos que ele não fez isso.
Outros analistas afirmam que o
governo foi à ONU e buscou privilegiar a via diplomática, porém
isso não surtiu resultado. Essas
pessoas dirão que Saddam era
uma ameaça que tinha de ser neutralizada. Sabemos que a guerra
foi incrivelmente controversa, e,
como repórter, penso que é mais
importante descrever o que realmente ocorreu, não tentar adivinhar os fatos ou analisá-los com
base em informações que não obtive pessoalmente. Minha intenção foi, portanto, expor os fatos.
Folha - Muitos especialistas dizem que Saddam não representava
uma verdadeira ameaça, como sustenta o governo Bush, e que a situação antes da guerra era melhor
no Iraque que a existente hoje. Como o sr. analisa esse argumento?
Woodward - É bem possível que
eles tenham razão. A violência está por toda parte, pois criamos
uma insurgência bastante forte.
Isso poderá transformar-se num
dos maiores erros geopolíticos de
todos os tempos. Questionei o
presidente a esse respeito e sobre
o modo como a história julgará a
guerra. Ele me disse que não conheceremos o julgamento histórico antes de
nossa morte.
De fato, levará muito tempo para que
possamos saber o real impacto da Guerra do Iraque.
Bush já deixou
claro que não
tem dúvida no
que se refere à
necessidade de
depor Saddam
e que acredita
que se tratasse da coisa certa a fazer. Por ora, tudo indica que foi
um grande erro, principalmente
porque as armas de destruição em
massa não foram encontradas.
Folha - Não é irresponsável que o
presidente do país mais poderoso
do planeta aja dessa forma?
Woodward - Não creio. Às vezes,
o tempo muda o julgamento histórico de fatos que parecem irrefutáveis. Há 50 anos, muita gente
dizia que o presidente [Harry]
Truman era um idiota e um louco, mas hoje ele é considerado um
dos grandes presidentes dos EUA.
Às vezes, um presidente tem de
manter um curso que não parece
correto para os outros, mas que
ele acredita ser o melhor para o
país. Indubitavelmente, sua atitude pode revelar-se incorreta, no
entanto ele tem de ser coerente.
Folha - Para um presidente como
Bush, o sr. crê que a guerra tenha
sido um erro?
Woodward - Não, para ele não,
pois a Casa Branca pensava que
Saddam tivesse
armas proibidas. Pode ser
que, em cinco
anos, a situação esteja estabilizada no Iraque, com menos terror e
mais democracia. Se isso
ocorrer, quem
dirá que a
guerra foi um
erro?
Por outro lado, se a instabilidade e a violência
aumentarem no Iraque, e o país
tiver um novo ditador, perceberemos, então, que a guerra foi efetivamente um erro.
Folha - O que o sr. pensa de acusações feitas por pessoas como Michael Moore, que afirmam que os
únicos objetivos da guerra foram o
petróleo e o favorecimento de algumas empresas americanas, como a Halliburton, que, de 1995 a
2000, foi presidida por Dick Cheney, vice-presidente dos EUA?
Woodward - Sem sombra de dúvida, Moore não tem a menor noção do que está falando. Ele tem
uma visão enviesada de política
externa e do jogo político em
Washington. Algumas de suas
acusações são ridículas, outras
têm fundamento. Não sei se ele é
tão popular quanto parece ser,
porém ele fala coisas que muita
gente quer ouvir. No sistema democrático americano, Moore tem
o direito de dizer o que quiser.
Folha - Como o sr. interpreta a recuperação de Kerry nas pesquisas
após o primeiro debate?
Woodward - Creio que isso possa
ser uma mudança significativa.
Muitos eleitores lembrarão as
imagens do presidente nervoso
durante o debate, mostrando certo desconforto com a situação. Se
isso ocorrer, Kerry poderá lucrar
ainda mais eleitoralmente. Certamente, os americanos não esquecerão a reação de Bush às críticas
de Kerry. Talvez o debate seja
lembrado apenas por isso, não
por seu conteúdo.
Não acredito em pesquisas. Assim, não gostaria de comentar números. Todavia acredito que se
trate de uma disputa muito dura,
e não podemos pensar que um
debate mudará totalmente a situação. Por outro lado, ele poderá
transformar-se no ponto de inflexão da corrida eleitoral.
Folha - Qual é sua opinião sobre a
recente mudança de estratégia de
Kerry, que, após o primeiro debate,
passou a concentrar-se em temas
domésticos, como o desemprego?
Woodward - Ainda creio que o
Iraque seja a questão mais importante da campanha. Afinal, trata-se de uma questão moral. As pessoas se preocupam muito com temas morais, embora a situação
econômica também influa nas decisões do eleitorado americano.
A iniciativa de travar uma guerra é muito grave e define o modo
como o país é visto internacionalmente. Sabemos que, em boa parte do mundo, incluindo no Brasil,
a imagem americana ficou bastante manchada. Isso pode ser decisivo na maneira como os americanos vêem suas próprias ações e
seu próprio país.
Folha - O sr. realmente acredita
que o eleitorado americano venha
a escolher seu candidato com base
numa questão moral, não em sua
própria situação econômica?
Woodward - Não penso que a
questão moral seja a única razão
por que o Iraque está no centro da
campanha. Precisamos observar
esse fato à luz do 11 de Setembro e
de todo o contexto de insegurança que tem marcado o cotidiano
dos americanos. Ninguém sabe
onde nem quando os terroristas
atacarão novamente, mas a ameaça faz que as pessoas se questionem a respeito de quem lidera o
país neste tempo de guerra.
Folha - Com base em sua experiência em Washington, é verossímil a acusação dos democratas de
que os republicanos e o governo estão tentando dificultar o acesso de
certas comunidades à votação?
Woodward - Não fiz nenhuma
reportagem independente sobre
essa acusação. Não posso, portanto, pronunciar-me a esse respeito.
Meu foco hoje é o Iraque. Desde o
tempo do Watergate, na década
de 70, busco ir aos fatos para escrever uma história. Assim, não
posso falar sobre o tema. Por outro lado, devo afirmar que tive
acesso a todos os documentos que
quis consultar sobre a decisão de
fazer a guerra contra Saddam.
Folha - Como o 11 de Setembro
mudou a política em Washington?
Woodward - A política externa
mudou e passou a ser o centro das
atenções. Com isso, Bush pode dizer que a ameaça tem de ser atacada antes de sua concretização. O
11 de Setembro permitiu a existência da Guerra do Iraque. Ambos mudaram a cena política. A
campanha eleitoral é, em grande
parte, sobre a maneira como os
EUA podem proteger-se.
Folha - Kerry é tão capaz de defender os EUA quanto Bush?
Woodward - Ele é preparado e
bem informado, além de ter uma
personalidade forte. Quem pensa
que ele é um covarde está errado.
O mesmo ocorre com aqueles que
crêem que Bush seja estúpido. O
presidente é muito mais esperto
do que pensam as pessoas. E
Kerry é bem mais forte do que
muitos imaginam. Conheço os
dois pessoalmente e posso dizer
isso com certeza.
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