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MARCHA A RÉ
Epidemia atinge jovens; alcoolismo e caos na saúde reduzem em cinco anos a vida da população masculina
Aids acelera crise demográfica na Rússia
JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL
A Rússia está doente. Melaine
Zipperer, especialista em Aids na
OMS (Organização Mundial da
Saúde), disse à Folha que aquele
país pode estar hoje com até 1,4
milhão de soropositivos, ou 2,6%
da população adulta.
Os números das autoridades locais são menos alarmantes: 292
mil. Mas há um consenso entre
especialistas estrangeiros de que a
subnotificação é generalizada.
Não há dinheiro ou estímulo
para medicar, atrair grupos de risco aos ambulatórios e, com isso,
aproximar a realidade das estatísticas. Só 1.800 pacientes recebem
medicamentos anti-retrovirais.
No Brasil, eles são 148 mil.
O HIV começou a se espalhar
pela Rússia a partir de 1987. Pouco depois veio abaixo o Estado soviético. E com ele entraram em
colapso alguns serviços públicos,
essenciais, como o de saúde.
Nicholas Eberstadt, demógrafo
e especialista em saúde pública
russa no American Entreprise
Institute (Washington), alerta
que não se romantize a rede de assistência médica no período do
comunismo.
Havia uma invejável quantidade de médicos por habitantes.
Mas o sistema era ineficiente.
Funcionava em casos de infecções
simples (tifo, cólera). Mas lidava
muito mal com doenças como o
câncer e as cardiovasculares.
Apesar dos pesares, disse ele à
Folha, a expectativa de vida caiu
drasticamente entre os homens
após o fim da URSS.
Em 1991, um cidadão poderia
viver 63,5 anos. Em 2002, a esperança de vida estava em 58,6 anos,
cinco anos a menos. Dependendo
dos efeitos da Aids, em 2025 um
homem russo viverá em média só
até os 55 anos, diz o demógrafo.
Entre as mulheres, a queda foi
menos violenta: de 74,3 para 72,1
anos. Mas é uma expectativa de
vida mais baixa que a de 1965.
Em 2001, morriam 171 adultos
para cada 100 crianças nascidas. A
baixa natalidade também acelera
o atual retrocesso demográfico.
Um outro especialista norte-americano, Murray Feshbach, autor de "Rússia"s Health and Demographic Crisis" (saúde e crise
demográfica na Rússia), deu à Folha outro tipo de exemplo: nos Estados Unidos, 88% dos adolescentes com 16 anos chegarão aos
60. Na Rússia, apenas 60%.
A Aids é um complicador de peso numa sociedade debilitada pelo alcoolismo e pelo tabagismo. E
na qual, diz Feshbach, se fosse para manter a expectativa de vida do
final dos anos 80, cerca 6 milhões
de russos ainda estariam vivos.
Elena Tamazova, coordenadora, em Moscou, do Unaids, programa da ONU de auxílio na definição de políticas contra a epidemia, não acredita que o problema
seja tão irreversível.
Disse à Folha que a notificação
de novos casos tende a diminuir.
Eles foram 88 mil em 2001, 60 mil
no ano seguinte. Não há ainda dados sobre o ano passado.
Há, também, "movimentos positivos" dentro da sociedade, com
a implementação de programas e
a chegada de recursos externos,
como os do Banco Mundial.
Inexiste, porém, um consenso
entre os russos de que o seu sistema de saúde "é um desastre", diz
Nicholas Eberstadt. "Nenhum
partido político colocou a Aids
em sua plataforma eleitoral. As
autoridades são negligentes." Não
se sentem pressionadas.
No Ministério da Saúde, diz
Eberstadt, há apenas quatro funcionários encarregados do HIV.
"No ano passado, em São Petersburgo, médicos russos me disseram que um quarto das mulheres atendidas nas policlínicas tinham alguma doença sexualmente transmissível." Eram donas de
casa, não prostitutas.
Ele também cita um estudo naquela cidade russa pelo qual um
sexto dos candidatos ao curso de
medicina tinha alguma moléstia
contraída por relações sexuais.
Ou seja, um clima amplamente
favorável à expansão do HIV.
Há certas particularidades locais no processo de expansão do
vírus. Melaine Zipperer, da OMS,
disse à Folha que a epidemia se
espalhou sobretudo entre jovens
usuários de droga, 80% dos casos
conhecidos. Criou-se um núcleo
rápido de expansão com o binômio prostituição-seringas.
Só em seguida é que passaram a
ser notificados casos entre casais
heterossexuais oficialmente estabelecidos e bebês nascidos de
mães soropositivas.
"Os usuários de drogas e as pessoas que praticam a prostituição
têm um acesso muito limitado
aos serviços de saúde", disse ela.
Há na Rússia ONGs que se instalam para atender a essa população. Mas, em algumas regiões,
elas não são aceitas ou penetram
com uma certa dificuldade. Esses
obstáculos levam Zipperer a considerar possível a previsão catastrófica de Eberstadt, de que o HIV
poderá privar a Rússia de 20 milhões de pessoas de 20 a 30 anos.
O Brasil tem entre 600 mil e 660
mil soropositivos, com uma população 40 milhões maior que a
da Rússia. Os russos estão gastando neste ano US$ 38 milhões para
combater a epidemia. No Brasil,
os gastos públicos- federais e locais- seriam de US$ 1,3 bilhão.
A comparação é feita por Murray Feshbach, por simples efeito
didático. Num país a epidemia assusta por sua rápida expansão. No
outro, ela já está sob controle.
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