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IRAQUE NA MIRA
Idéias para o regime iraquiano pós-Saddam incluem democracia ocidental, modelo turco e tirania "amigável"
Oriente Médio entra em momento decisivo
SYLVAIN CIPEL
DO "LE MONDE"
"A democracia é um remédio
pesado. Ela deve ser administrada
em doses pequenas, senão corre-se o risco de matar o paciente."
Foi o que disse, referindo-se ao
Iraque, o orientalista Bernard Lewis, durante um colóquio promovido em Washington, no início de
outubro, por um grupo de reflexão muito próximo do governo
Bush, o American Enterprise Institute for Public Policy (AEI). Richard Perle, diretor do Conselho
de Política de Defesa junto ao
Pentágono, é um dos dirigentes
do instituto. O título do colóquio
era ""O dia seguinte: os planos para o Iraque pós-Saddam".
Falou-se muito de democracia,
e mais ainda dos obstáculos a seu
surgimento num Iraque liberto de
seu tirano. A leitura das minutas
do colóquio oferece uma idéia
bastante precisa do estado de espírito prevalecente hoje nos grandes círculos da administração
americana. A quase totalidade
dos participantes no colóquio
-políticos e especialistas americanos, intelectuais iraquianos e
membros do Congresso Nacional
Iraquiano (CNI), principal grupo
de oposição iraquiano no exílio-
estava unida em torno de uma
idéia principal: a guerra é inevitável. Os EUA não vão se contentar
com "meias medidas", que, segundo Perle, consistiriam em ""retirar as armas de destruição em
massa das mãos de Saddam Hussein". "A única solução no Iraque
é substituir os brutos que hoje governam o país pelo tipo de pessoas desta mesa".
Para Perle, a derrubada da ditadura iraquiana seria apenas o primeiro ato de uma estratégia que
visa aproximar o Iraque do Ocidente, da mesma maneira que
Reagan elaborou uma estratégia
para acuar o ""império do mal" soviético e restaurar a democracia
na Europa central.
Vários participantes insistiram
no fato de que o Oriente Médio vive um momento-chave, "o mais
importante desde a queda do Império Otomano, em 1917", disse o
opositor iraquiano Kanan Makiya. Mais provocador, Bernard Lewis usou uma frase diferente: ""O
tempo que os povos do Oriente
Médio têm para superar suas diferenças e aprender a cooperar é
contado. Se conseguirem, poderão fazer grandes coisas. Se não, o
terrorista suicida vai se tornar a
metáfora de toda essa região."
Instaurar a democracia no Iraque? Isso não acontecerá ""da maneira que se esperava na Europa
central", previne o oposicionista
Rend Rahim Francke, da Fundação Iraque. O professor Lewis resume o problema em tom contundente. ""Dois pontos de vista
predominam", disse ele. ""O primeiro é que os árabes seriam incapazes de formar um governo
democrático, que é um fenômeno
puramente ocidental. Eles são diferentes de nós. Façam o que fizerem, esses países serão governados por tiranos corrompidos, e o
objetivo de uma política externa
eficaz é assegurar que esses tiranos sejam amigáveis e não hostis.
Esse ponto de vista é comumente
visto como sendo o dos setores
pró-arabes." Risos na sala.
O outro ponto de vista, prosseguiu Lewis, quer que ""seja possível, com nossa ajuda e sob nossa
orientação, estabelecer democracias nesses países, ajudando-as
gradativamente". "Esse ponto de
vista é conhecido como imperialismo." Mais risos. Se o primeiro é
rejeitado por princípio -o objetivo da intervenção ocidental no
Iraque não pode reduzir-se à
substituição de um tirano hostil
por um "tirano amigável"- e se
o segundo pode recriar uma
aliança de todos os iraquianos
contra a potência ""neo-imperialista" (""instaurar um governo servil significa já começar derrotado", previne, ainda, Lewis), que
tipo de solução de meio-termo, de
"democracia em pequenas doses", pode restar?
Duas opções emergem da discussão. A primeira é calcada sobre o chamado ""modelo turco".
Nas palavras de um de seus defensores, ela significa a adoção de
uma Constituição laica e democrática, que garanta a integridade
territorial do país e o proteja contra qualquer pressão interna de
caráter étnico ou religioso. E, sobretudo, ""alguém que defenda o
país" num ambiente potencialmente hostil -sendo que esse
"alguém" só pode ser o Exército.
Assim, o regime do Iraque pós-Saddam seria semelhante àquele
que já conhecemos na Turquia,
ou, ainda, no Paquistão ou na Argélia: um sistema político que garante um governo eleito, colocado
sob a estreita vigilância de um Estado-Maior, autônomo mas pró-ocidental, que determina as opções do país em matéria de política regional e de segurança. Um
governo que, nas questões decisivas, estaria a serviço do Exército, e
não o inverso.
A segunda opção, muito evocada no colóquio, consiste na restauração da monarquia hachemita em Bagdá. Esta, instalada no
trono em 1921 pelos britânicos, foi
derrubada em 1958 por uma revolução social e política. ""Se um
apelo lhes for feito, os hachemitas
dirão que sim, mas não os imagino lançando um movimento monarquista para voltar ao poder", é
o prognóstico de Bernard Lewis.
Enquanto isso, quase todos os
participantes consideraram necessária a presença de um contingente importante de tropas da
coalizão, sob comando americano, por vários anos.
Professor em Harvard, o iraquiano Kanan Makiya tentou
propor uma perspectiva que, ele
admite, seria totalmente revolucionária no Oriente Médio: o surgimento de um Iraque democrático, laico, federal, multiétnico e
multiconfessional, rompendo por
completo com qualquer referência ao nacionalismo árabe -um
Iraque, em suas palavras, que ""seria o Estado de cidadãos com direitos iguais, logo, é preciso ter
consciência disso, um Iraque não
árabe". Suas propostas suscitaram poucos comentários -como
se essa opção, que visa superar os
antagonismos religiosos e nacionais do país o mais ""diversificado" do mundo árabe, decididamente não passasse de utopia.
Mas será que as soluções imaginadas pelos EUA são mais realistas?
Tradução de Clara Allain
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