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"Vire-se" é a dimensão central da experiência social
Todas as atividades econômicas e seus controles se reorganizam em torno de roubos, desvios e arranjos internos, numa violação sistemática da legalidade socialista
Os espaços públicos se tornam espaços de concordância e conformidade, e a insegurança impede cada um de formular críticas políticas diante de um interlocutor que não seja de sua inteira confiança
FREE-LANCE PARA A FOLHA, DE HAVANA
A partir da segunda metade dos
anos 80, o esgotamento da ajuda
soviética mergulha Cuba numa
crise econômica sem precedentes.
A escassez de vários produtos impõe um empobrecimento generalizado, e os salários se tornam desprezíveis em vista do custo dos
produtos básicos, sendo que o período especial se caracteriza pela
autorização parcial das atividades
econômicas privadas, a descriminação da posse de dólares e a explosão do turismo.
Mais ainda, todas as atividades
econômicas e seus sistemas de
controle se reorganizam em torno
de roubos, desvios e arranjos internos. Essa violação sistemática
da legalidade socialista desemboca na criação de normas, e o ""virar-se" passa a ser a dimensão
central da experiência social.
Longe de não oferecer perspectiva, a sociedade cubana engana
seus cidadãos, prendendo-os na
armadilha da esperança: sobreviver, melhorar sua situação financeira, deixar o país. As pessoas
buscam um emprego que lhes
permita roubar produtos que
possam ser revendidos ou procuram as atividades privadas. O entusiasmo estratégico é voltado sobretudo aos empregos nos setores
dolarizados da economia, nos
quais o turismo ocupa o primeiro
escalão. Os salários nesses setores
são mais altos, as mordomias,
maiores, e os arranjos internos
mais lucrativos, tanto que as comissões cobradas pela intermediação entre turistas e os agentes
da economia ilegal são muitas.
As transgressões também fazem
todos os cubanos ingressarem na
categoria de infratores, de acordo
com os rótulos adotados pelo regime. Esse desnível legal e ético é
um estigma, no sentido em que
ameaça a todo momento prejudicar a quem o comete, tornando-se, assim, uma desvantagem que é
preciso dissimular. Ao nível da
quadra, o Comitê de Defesa da
Revolução (CDR), composto por
todos os residentes com mais de
14 anos, é encarregado de velar
coletivamente pelo cumprimento
das leis, papel que recai especialmente sobre o presidente, o vice-presidente e o ""encarregado de vigilância". Como cada um participa, de uma maneira ou outra, de
atividades contrárias à lei, a reorientação dos comportamentos
econômicos inscrita na marginalidade virou algo normal. A generalização das transgressões que
resultam na obtenção mútua de
benefícios cria um equilíbrio entre estigmas e ameaças, desta vez
em nível de vizinhança, de bairro
e do local de trabalho.
Enquanto isso, os desejos criados numa sociedade antes acostumada a desigualdades aceitáveis e
o trabalho zeloso dos delatores
anônimos são espadas de Dâmocles que podem jogar por terra
qualquer esperança, a qualquer
momento. Pior ainda, as regras
do jogo nunca chegam a ser estabelecidas e já sofreram mudanças
constantes no decorrer da revolução. O "laissez-faire" do qual desfrutam uns e outros pode ser revogado a qualquer momento, e,
periodicamente, grandes ondas
de repressão se abatem sobre a
economia paralela. Assim, a possibilidade de processos na Justiça
nunca é descartada, mesmo que
seja possível fazer aplicar a lei de
maneira rígida, já que todos a infringem.
Ao mesmo tempo, a propaganda revolucionária e a ""educação"
ocupam um lugar cada vez mais
importante e insistem com veemência cada vez maior sobre as
normas de adesão à revolução:
lealdade para com os dirigentes,
trabalho (inclusive o voluntário),
consciência moral e patriotismo.
Não apenas as reuniões das organizações de massa que percorrem
toda a sociedade vêm conhecendo um dinamismo novo, como as
marchas, os desfiles e os julgamentos abertos vêm se multiplicando, envolvendo milhares de
pessoas. Assembléias e congressos se multiplicam, eleições se sucedem, e é a sociedade inteira que
se engaja na chamada batalha das
idéias.
Além disso, se as jornadas de
trabalho voluntárias ou a participação em campanhas de prevenção são menos assíduas do que
antes, elas não podem ser ignoradas pelos cidadãos obrigados a
administrar seu capital político.
Ao nível do CDR, do centro de
trabalho ou da escola, um responsável faz uma lista daqueles que
participaram ou assistiram aos
""programas da revolução". São
todos esses antecedentes, assim
que uma recapitulação dos ideais
da revolução e seus dirigentes,
que atestam a qualidade revolucionária de cada pessoa. É participando ostensivamente das diversas manifestações de apoio à revolução que cada um se garante.
Mais do que sobre o respeito pelas normas de comportamento
público, o não-entrave das atividades de luta pelas autoridades se
baseia sobre o fortalecimento
constante do capital político. Assim, os espaços públicos se tornam, mais do que nunca, espaços
de concordância e conformidade,
e a insegurança impede cada um
de formular críticas políticas
diante de um interlocutor que não
seja de sua inteira confiança.
As relações de poder dominadas pelas autoridades também se
apóiam sobre a utilização funcionalista dos espaços públicos por
uma população que fez do conformismo um recurso estratégico.
Qualquer esperança de melhora é
um freio à crítica da ordem castrista. Trabalhar ou estudar, mesmo de forma forçada, permite
que as pessoas não corram o risco
de se verem sujeitas à lei da periculosidade (o encarceramento
dos ociosos). O acesso aos empregos cobiçados, assim como a obtenção de uma licença que autoriza o trabalho ""por conta própria",
depende de um atestado da qualidade revolucionária do candidato, atestado esse que será dado pelos relatórios das organizações de
massa. Quanto à carta de convite
para viajar a um país estrangeiro,
ela só será avalizada pelas autoridades se o candidato satisfizer às
normas de comportamento revolucionário. Um pedido de visto
formulado junto à representação
dos interesses americanos em Cuba é condicionado à prova de que
o candidato possui família nos
EUA, experiência profissional de
três anos na economia oficial e a
ausência de antecedentes criminosos.
Os cidadãos do ""mundo livre"
se perguntam se a manifestação
do 1º de Maio que reuniu 1 milhão
de pessoas na praça da Revolução,
em Havana, refletiu ""a adesão do
povo" ou ""a preocupação em
continuar vivos". Muito mais do
que isso, ela foi um sintoma da armadilha totalitária cubana, e a
união aparente dissimulou a fragmentação e a insegurança que
ainda garantem bastante tempo
no poder ao ""Barba".
(FR)
Tradução de Clara Allain
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