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São Paulo, domingo, 11 de maio de 2003

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PÁTRIA OU MORTE

Usada para justificar os sacrifícios, a expectativa pelo futuro é superada pela sensação de que ele jamais virá

Cubanos cansam de esperar por "mañana"

FREE-LANCE PARA A FOLHA, DE HAVANA

Reprimidos pelo aparelho do Estado, os dissidentes cubanos vivem isolados, desconhecidos pela população, apesar do avanço da temática democrática e da rejeição da mística revolucionária. As conversas reservadas revelam o sufocamento da liberdade de expressão, assim como a ausência de partidos ou eleições livres.
Mas é ainda mais ao nível das liberdades econômicas que as dificuldades se fazem sentir. As limitações ao direito de propriedade não têm mais razão de ser, e a quase inexistência da liberdade de empreender é sentida como uma injustiça. A suspensão da concessão de licenças, o nível absurdo dos impostos e o assédio a que são submetidos os ""cuentapropistas" (pessoas que trabalham por conta própria) pelos inspetores levaram à reavaliação do espaço que Fidel Castro pretende criar para as atividades econômicas privadas. Aos olhos de todos, o monopólio do Estado virou símbolo de opressão e ineficiência.
Além disso, a maioria da população rejeita a grandiloquência dos valores revolucionários. O espírito de sacrifício em nome de um ideal pisoteado sem dó por aqueles que deveriam defendê-lo, tudo isso causou o cansaço das pessoas que, ao longo das últimas quatro décadas, não só não viram seus sonhos se realizarem, como nem sequer conseguiram retocar a pintura do banheiro.
O desinteresse do bom revolucionário se torna alvo de ridículo, e a ""rejeição dos bens materiais" perde sentido quando a penúria é tamanha que toda a renda familiar tem de ser dedicada à alimentação. A quebra de uma geladeira que já sobreviveu a dez presidentes americanos é uma possibilidade que apavora muitas famílias.
""Mañana", o futuro mencionado pelos dirigentes para justificar os sacrifícios do presente, deu lugar na cabeça das pessoas a uma vida vivida de um dia para o outro e a um discurso que repete, resignado, que não há futuro. Quer dizer que a mudança em Cuba seria apenas questão de mobilização e tempo? Nada poderia ser menos certo, quando é a própria noção de futuro que não faz mais sentido e quando o medo e a incoerência restringem a formulação de um projeto político alternativo.
As notícias internacionais veiculadas em Cuba dão destaque aos países ex-comunistas. O destaque é dado à existência de vasta corrupção, à hegemonia das máfias, à decadência econômica e, sobretudo, à pobreza galopante.
O programa diário ""Mesa Redonda" -no qual os participantes têm a particularidade de sempre concordarem em tudo- pinta o retrato de uma América Latina vitimada pela miséria, o narcotráfico, a prostituição infantil, a insegurança e a violência, fazendo contraste com índices que mostram o avanço de Cuba em saúde e educação. Sem terem chegado a conhecer a democracia, os cubanos já vivem a ""desilusão democrática". A segurança é o primeiro dos direitos humanos, e o homem comum diz apreciar a ""liberdade": ""Poder andar pela rua ou deixar seus filhos brincarem em qualquer lugar, sem medo de que acabem sendo sugados por uma rede de prostituição". Para a maioria da população, o fim do regime de Fidel seria o fim da ordem, a chegada do submundo, do caos e da desigualdade.
Mais ainda, a propaganda revolucionária forjou a história de Cuba à imagem de um povo em luta por sua independência, pela igualdade e a justiça social. Essas conquistas, eternamente frustradas por uma potência estrangeira, teriam finalmente sido garantidas pela revolução. A própria ""cubanidade" se confundiria com esses valores, e os cubanos continuam a acreditar que os EUA querem se apropriar da ilha ou, pelo menos, impor seus interesses. A ambiguidade também cerca o papel dos cubano-americanos, imaginados sempre dispostos a reivindicar bens que lhes foram confiscados.
Enfim, como todo problema pessoal corre o risco de ser prolongado por um ato de delação, a preocupação de não criar inimigos foi preservada. Além disso, muitos acham que o regime atual contém a violência que poderia ser provocada pelos negros, ao mesmo tempo em que preserva os bairros marginais de explosões. Tudo isso contribui para fazer as pessoas temerem o caos que poderia irromper se o regime de Fidel, tão coercivo quanto tranquilizador, deixasse de existir.
O tempo está suspenso, aguardando o desaparecimento do ""Barba", mais ainda porque seu substituto previsto não chega a dissipar nenhuma incerteza: seu sucessor designado, Raúl Castro, é quase tão velho quanto ele e, aos olhos de todos, muito menos inteligente e respeitado. Sobre a linha revolucionária, os rumores designam um favorito. Mas, paradoxalmente, essa linha é conhecida só por Fidel. É esse fato que explica o imobilismo político de Cuba.
(FELIPE ROQUE)


Tradução de Clara Allain


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