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ARTIGO
Intervir no Iraque surge como imperativo
HENRY KISSINGER
À medida que se aproxima o
aniversário do ataque ao
World Trade Center, a administração americana enfrenta a decisão de política externa que terá as
maiores consequências para a
Presidência George W. Bush. O
presidente e o secretário de Estado, Colin Powell, já afirmaram repetidas vezes que os EUA fazem
questão de uma troca de regime
no Iraque. Num discurso eloquente proferido em West Point
em junho, Bush enfatizou que as
novas armas de destruição em
massa já não permitem que os
EUA se dêem ao luxo de ficar
aguardando um ataque; ""precisamos estar prontos para entrar em
ação antecipada e preventiva
quando isso for necessário para a
defesa de nossa liberdade".
Ao mesmo tempo, a posição
formal da administração é que
ainda não foi tomada nenhuma
decisão no sentido de recorrer à
força. A ambiguidade pode, com
frequência, ajudar a conscientizar, sem onerar a discussão com a
necessidade de uma decisão. Mas,
quando a ambiguidade chega ao
ponto de permitir vazamentos de
informações relativas ao planejamento militar, às discussões no
Congresso e às pressões de aliados, é chegada a hora de definir
uma política abrangente para os
EUA e o resto do mundo.
A nova abordagem é revolucionária. Definir uma mudança de
regime como meta de uma intervenção militar desafia o sistema
internacional acordado pelo Tratado de Westphalia, em 1648, que,
após a carnificina resultante das
guerras religiosas, estabeleceu o
princípio da não-intervenção nos
assuntos internos de outros países. E a noção da ação preventiva e
antecipada justificada contraria o
direito internacional moderno,
que autoriza o uso da força em defesa própria apenas para combater ameaças reais, não potenciais.
Assim, a possível intervenção
militar americana no Iraque terá
o apoio apenas relutante da maioria dos aliados americanos na Europa, se é que o terá. O Oriente
Médio se dividirá entre um grupo
não articulado, que vai avaliar o
que pesa mais -ver-se livre das
pressões radicais vindas de Bagdá
ou enfrentar o perigo crescente
das ruas árabes locais-, e os islâmicos radicais, já enfurecidos pela
presença norte-americana na região. Quanto a outros países, a
Rússia vai avaliar o que pesa mais:
o golpe contra o radicalismo árabe ou seus interesses econômicos
no Iraque, os benefícios da boa
vontade americana ou seu receio
de ver-se marginalizada. A China
vai avaliar a ação em termos de
sua relutância em justificar uma
intervenção em seu próprio país
contra o desejo que Pequim tem
de alcançar uma relação de cooperação com os EUA, numa fase
de sucessão política e de integração na economia mundial. A reação mais interessante (e, potencialmente, mais fatídica) pode
muito bem ser a da Índia, que se
sentirá tentada a aplicar o novo
princípio da ação antecipada e
preventiva contra o Paquistão.
Para abrir caminho no meio
desse emaranhado espesso, a administração precisa fixar uma estratégia abrangente a seguir e
uma política clara e inequívoca
para declarar diante do resto do
mundo. E um conflito de tal importância e tais dimensões não
pode ser mantido unicamente como expressão do Poder Executivo. É preciso encontrar uma maneira de obter apoio do Congresso e da população.
A administração deve estar preparada para empreender um debate nacional, porque os argumentos a favor da eliminação da
capacidade iraquiana de destruição em massa são muito fortes. O
regime internacional que se seguiu ao Tratado de Westphalia
baseou-se no conceito de um Estado-nação impermeável e de
uma tecnologia militar limitada
que, de modo geral, permitia que
um país corresse o risco de aguardar por um desafio não-ambíguo.
Mas a ameaça terrorista transcende as fronteiras do Estado-nação; ele deriva, em grande medida, de grupos transnacionais que,
se conseguirem adquirir armas de
destruição em massa, poderão infligir danos catastróficos, até mesmo irrecuperáveis. Essa ameaça
se agrava quando essas armas estão sendo produzidas, numa violação direta de resoluções da
ONU, por um autocrata implacável que tentou anexar um de seus
países vizinhos e atacou outro,
dono de um histórico comprovado de hostilidade em relação aos
EUA e ao sistema internacional
existente. Os argumentos se fortalecem ainda mais pelo fato de
Saddam ter expulsado do país os
inspetores da ONU enviados como parte do acordo que pôs fim à
Guerra do Golfo e de ter usado essas armas tanto contra sua própria população quanto contra um
adversário estrangeiro.
É por esse motivo que as políticas que frearam a URSS por 50
anos têm pouca probabilidade de
funcionar contra a capacidade
iraquiana de cooperar com terroristas. Os ataques suicidas deixaram claro que o raciocínio dos
combatentes do jihad não é o
mesmo que o das partes envolvidas na Guerra Fria. E os terroristas não têm base nacional a proteger. Assim, a preocupação de que
uma guerra contra o Iraque possa
desencadear o uso de armas iraquianas de destruição em massa
contra Israel e a Arábia Saudita é
uma demonstração de autocoibição. Se o perigo existe, aguardar
vai apenas ampliar a possibilidade de chantagem.
Existe outra razão -que, de
modo geral, não é expressa- para que se procure levar a situação
com o Iraque a atingir um ponto
crítico. O ataque ao World Trade
Center teve suas origens em muitas partes do mundo islâmico, e,
especialmente, do mundo árabe.
Não teria sido possível sem a cooperação tácita de sociedades que,
nas palavras de Bush, ""se opõem
ao terror, mas toleram o ódio que
gera o terror". Embora a estratégia americana de longo prazo deva procurar superar as causas legítimas desses ressentimentos,
sua política imediata deve deixar
claro que um desafio terrorista ou
um ataque sistêmico contra a ordem internacional gera consequências catastróficas para seus
perpetradores e também para
aqueles que os apóiam, tácita ou
explicitamente.
A campanha no Afeganistão
constituiu um primeiro passo importante nesse sentido. Mas, se
permanecer como a iniciativa
principal na guerra contra o terrorismo, ela corre o risco de se enfraquecer e virar nada mais do
que uma operação de busca de informações sigilosas, enquanto o
resto da região pouco a pouco
volta ao padrão anterior a 11 de setembro, sendo os radicais encorajados pela manifestação de hesitação americana, e os moderados,
desmoralizados pelo fato de o Iraque continuar como potência regional agressiva, sem nada que o
detenha.
A derrubada do regime iraquiano e, no mínimo, a eliminação de
suas armas de destruição em massa teriam consequências políticas
potencialmente benéficas, também: a chamada rua árabe pode
concluir que as consequências negativas do jihad pesam mais do
que quaisquer possíveis benefícios. Isso incentivaria o surgimento de uma abordagem nova
na Síria, ampliaria as forças moderadas na Arábia Saudita, multiplicaria as pressões em favor da
evolução democrática no Irã, deixaria claro para a Autoridade Nacional Palestina que os EUA estão
falando a sério quando dizem que
querem eliminar tiranias corruptas, e, por fim, proporcionaria um
equilíbrio melhor na política petrolífera no interior da Opep.
Ao mesmo tempo, a intervenção no Iraque precisa ser concebida como parte de um contínuo
cujo êxito final, em última análise,
depende tanto da estratégia que a
precede quanto daquela que a segue. A responsabilidade especial
que cabe aos EUA, na condição de
país mais poderoso do mundo,
consiste em trabalhar em prol de
um sistema internacional que seja
fundamentado em mais do que o
poderio militar -que, na verdade, se esforce para traduzir o poder em cooperação. Qualquer atitude diferente dessa vai acabar
por nos isolar, pouco a pouco, e
nos esgotar. Mesmo quando os
EUA agem sozinhos em questões
que afetam sua segurança nacional, como o Iraque, é de nosso interesse nacional fazer nossa ação
ser acompanhada de um programa de reconstrução posterior à
guerra, transmitindo ao resto do
mundo a idéia de que nossa primeira guerra antecipada e preventiva foi imposta pela necessidade e que buscamos defender
não apenas nossos interesses, mas
os do mundo.
Por essa razão, o objetivo da
mudança de regime deve ser subordinado, na política americana
declarada, à necessidade de eliminar as armas de destruição em
massa iraquianas, conforme o
previsto nas resoluções da ONU.
A restauração do sistema de inspeções existente antes de os inspetores serem expulsos por Saddam é claramente insuficiente. É
preciso propor um sistema de inspeção extremamente rígido que
consiga impor uma transparência
substancial das instituições iraquianas. Como são tão sérias as
consequências de simplesmente
deixarmos a diplomacia se esgotar, é preciso fixar um limite de
tempo. Assim, os argumentos pela intervenção militar terão sido
apresentados no contexto da busca por uma abordagem comum.
Nesse ponto, também, os aliados dos EUA serão obrigados a
enfrentar a opção da qual, até agora, vêm se esquivando: entre sua
oposição interna ou o distanciamento e separação dos EUA. Dissociar-se das ações americanas
não salvará os aliados das consequências da abdicação num mundo de terrorismo e armas de destruição em massa, nem do distanciamento de um aliado de meio
século.
É preciso prestar atenção especial ao contexto político e psicológico com relação ao mundo árabe. É preciso uma explicação do
porquê de as armas iraquianas de
destruição em massa impedirem
a solução de todos os problemas
importantes na região -não em
categorias ocidentais de segurança, mas em termos relevantes aos
tumultos e reviravoltas na região.
É por isso que é tão importante
aliar a pressão militar a um programa de reconstrução econômica e social do qual os aliados e os
regimes árabes moderados devem ser convidados a participar.
Ao mesmo tempo, a administração deve rejeitar o canto da sereia segundo o qual, antes da intervenção no Iraque, é preciso encontrar uma solução para a questão palestina. Não é verdade que a
estrada para Bagdá passa por Jerusalém. É muito mais provável
que a estrada a Jerusalém passe
por Bagdá. O presidente comprometeu sua administração com um
programa de criação de um Estado palestino no prazo de três
anos. Ele não deixou margem a
dúvidas quanto a sua determinação em fazer esse cronograma
avançar. Mas o cronograma não
deve ser usado para adiar decisões
que não podem esperar.
A complexidade do ambiente
internacional deve afetar o desenho das operações militares. Se a
guerra se mostrar inevitável, não
será hora de fazer experiências.
Quanto mais tempo se prolongarem as operações militares, maior
será o perigo de distúrbios na região, do distanciamento de outros
países e de isolamento dos EUA.
Tudo indica que o Iraque esteja
muito mais fraco do que estava na
Guerra do Golfo, de 1991, e os
EUA, várias vezes mais forte. Mas
o planejamento deve ser baseado
na disponibilidade visível de uma
força avassaladora, capaz de enfrentar todas as contingências, e
não na expectativa de um colapso
iraquiano em pouco tempo. Depender principalmente do poderio aéreo e das forças de oposição
locais é perigoso demais, pois não
deixa margem para erros ou equívocos de cálculo. Além disso, pode colocar essas forças locais em
posição política predominante,
excluindo outras opções políticas
antecipadamente. Assim, será necessário um envio conspícuo de
forças e poderio americanos à região, para dar respaldo à diplomacia com vistas à eliminação das
armas de destruição em massa e
para dar margem para uma vitória rápida se a ação militar mostrar ser a única opção viável. Além
disso, esse deslocamento de forças pode motivar líderes iraquianos a considerar a possibilidade
de derrubar Saddam do poder.
Em última análise, porém, a política americana com relação ao
Iraque será julgada pelo tratamento político dado à fase que se
seguir às operações militares. Precisamente em função da natureza
estabelecedora de precedentes
dessa guerra, seu resultado, muito
mais do que a maneira como entramos nela, é que vai determinar
a maneira como as ações americanas serão vistas em nível internacional. E poderemos encontrar
muito mais países dispostos a
cooperar na reestruturação do
que na guerra, mesmo porque nenhum país quer que os EUA ocupem uma posição exclusiva numa
região tão central para o fornecimento energético e a estabilidade
internacional. Pode ser essa a maneira de fazer o vínculo entre a
ação americana unilateral e o sistema internacional.
A intervenção militar vai fazer
os EUA enfrentarem a questão de
como preservar a unidade e garantir a integridade territorial de
um país que é um componente essencial de qualquer equilíbrio no
golfo. Com certeza é correta a resposta convencional de que se deve
buscar uma solução federal na
qual os xiitas, os sunitas e os grupos étnicos curdos do Iraque possam conviver sem que qualquer
um deles exerça hegemonia. Mas
qualquer planejamento teria de
levar em conta os meios para impedir que a autonomia se transformasse em independência, o
que, no caso dos curdos, colocaria
em risco o apoio da Turquia à fase
militar. E tudo isso teria de ocorrer no contexto de um governo
com participantes capazes de resistir às pressões exercidas por remanescentes do velho regime ou
de países vizinhos, decididos a desestabilizar o sistema emergente.
A intervenção militar deve ser
tentada apenas se estivermos dispostos a sustentar tal esforço pelo
tempo que for necessário. Afinal,
em última análise, a tarefa consiste em traduzir a intervenção no
Iraque em termos de aplicabilidade geral a um sistema internacional. A iminência da proliferação
de armas de destruição em massa,
os perigos enormes que ela envolve, a rejeição de um sistema viável
de inspeções, a hostilidade manifesta de Saddam, todos esses fatores se somam para gerar o imperativo da ação preventiva antecipada. Mas não atende aos interesses nacionais americanos estabelecer a ação preventiva antecipada
como princípio universal que
possa ser aplicado por qualquer
país. E estamos apenas no início
da ameaça de proliferação global.
Sejam quais forem as visões relativas ao Iraque, os países do mundo
precisam confrontar a impossibilidade de permitir que esse processo corra solto, sem sofrer qualquer restrição. Os EUA fariam
uma grande contribuição a uma
nova ordem internacional se convidassem o resto do mundo e, especialmente, as principais potências nucleares, a cooperar na criação de um sistema para lidar com
essa ameaça à humanidade numa
base mais institucional.
Henry Kissinger, 79, é cientista político
norte-americano de origem alemã. Foi
conselheiro de Assuntos de Segurança
Nacional e secretário de Estado durante
os governos Nixon e Ford, de 1969 a
1976. Em 1973 ganhou o Prêmio Nobel
da Paz por ter negociado o fim da Guerra
do Vietnã.
Tradução de Clara Allain
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