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TELEVISÃO
Cresce o número de ações na Justiça contra "reality shows" que radicalizam os riscos e a humilhação dos participantes
Pegadinhas são alvo de processos nos EUA
ADAM LIPTAK
DO ""THE NEW YORK TIMES"
As férias que James e Laurie
Ann Ryan passaram em Las Vegas em janeiro de 2002 tiveram
mais emoções do que eles teriam
desejado. Pouco depois de fazer o
check-in no Hard Rock Hotel, o
casal encontrou um cadáver na
banheira. Quando tentou deixar o
hotel, foi impedido por seguranças e um paramédico.
Outro que teve uma grande surpresa foi Philip Zelnick, quando
tentou embarcar num avião no
Arizona. Um guarda da segurança o fez se deitar numa esteira
transportadora e passar por uma
máquina de raio-X da qual, conta,
ele saiu "humilhado e sangrando
por todos os lados".
Os dois incidentes foram pegadinhas preparadas por programas de TV. Mas Zelnick e o casal
Ryan não acharam graça, tanto
assim que processaram os produtores dos programas.
Até algum tempo atrás, processos contra programas de entretenimento que não seguem um roteiro fixo eram abertos por pessoas que se machucavam imitando proezas como as que são realizadas no programa ""Jackass", ou
que achavam que as regras de
"Survivor" eram aplicadas de maneira injusta. Hoje, porém, advogados de emissoras e executivos
de seguradoras dizem que um novo tipo de processo está em alta
-aquele que envolve alegações
de danos físicos e emocionais sérios sofridos pelos participantes.
Essas ações suscitam, conforme
dizia uma delas, aberta no mês
passado, a questão de como a lei
deve tratar ""o aparente anseio do
público de assistir ao sofrimento
físico e emocional na vida real". O
processo acima citado foi aberto
por uma mulher que afirma ter sido gravemente machucada num
artefato chamado ""arreio da dor",
durante as filmagens do piloto de
um seriado da CBS.
O fato é que os processos estão
modificando o aspecto econômico dessa espécie de programação,
conhecida por custar pouco. ""Era
inevitável que o aumento extraordinário dos "reality shows" levasse
a um aumento igualmente extraordinário de processos", disse
Sandra Baron, diretora-executiva
do Centro de Recursos Jurídicos
da Imprensa, que reúne informações sobre ações abertas contra a
mídia. ""Os custos dos seguros vão
subir vertiginosamente, e os dos
processos litigiosos, mais ainda."
Bob Banner foi produtor do
programa ""Candid Camera" nos
anos 60. Ele disse que não se recorda de um único processo judicial aberto contra o programa.
"Nós nunca tentávamos constranger as pessoas. Fazíamos coisas muito mais leves."
Mas os tempos mudaram, disse
a advogada Gloria Allred, de Los
Angeles, que representa os querelantes em dois processos abertos
contra "reality shows". As razões
disso, para ela, são econômicas e
também culturais. ""A "TV humilhação" vende bem."
Sangue
Uma nova versão de "Candid
Camera", exibida pela rede Pax,
foi responsável pelo incidente no
aeroporto de Bullhead City, Arizona, ocorrido no verão americano de 2001 e que deixou machucado o personal trainer californiano
Philip Zelnick, 35. Ele contou que
se sentiu coagido a deitar-se na esteira transportadora. ""Minha primeira reação foi imaginar que só
podia ser brincadeira", contou. O
apresentador do programa, Peter
Funt, vestia o uniforme de um segurança do aeroporto. Ele garantiu a Zelnick que o pedido era sério. ""Não se brinca assim num aeroporto", disse Funt. Zelnick só ficou sabendo que tinha sido vítima de uma pegadinha quando
saiu da esteira, contundido, sangrando e gritando de dor.
O segmento acabou não sendo
colocado no ar, mas pegadinhas
semelhantes têm feito sucesso,
"como paródia da segurança nos
aeroportos", disse Funt, em entrevista. Filho de Allen Funt, criador e apresentador original de
"Candid Camera", Peter Funt disse que a idéia não é representativa
da abordagem mais comumente
usada pelo programa. "Parte meu
coração ver que estou mergulhado na fossa dos "reality shows"",
disse ele. Apesar disso, admitiu
que sente a pressão dos modelos
de outros programas. ""Fica cada
vez mais difícil manter padrões
em que acreditamos", disse,
"quando nossos concorrentes
não hesitam diante de nada e parecem estar fazendo sucesso".
Apesar disso, Funt não expressou grande solidariedade para
com Zelnick. ""Machucamos uma
pessoa acidentalmente", disse ele.
""Fiquei aliviado por não ter sido
mais grave e chateado porque
aconteceu, para começo de conversa. Entregamos o problema
nas mãos de nossa seguradora.
Ofereceram ao rapaz um valor
simbólico, alguns milhares de dólares, mas ele recusou."
Suplício
Os "reality shows" que não envolvem câmeras ocultas procuram proteger-se contra possíveis
medidas legais, exigindo que seus
participantes assinem documentos isentando-os de responsabilidade por possíveis danos.
O casal Jill Mouser e Marcus
Russell, de Los Angeles, assinaram papéis desse tipo antes de serem levados de helicóptero, de
olhos vendados, para a divisa entre Arizona e Novo México em
outubro passado, quando foi filmado o piloto de um novo programa da CBS, ""Culture Shock".
Mouser, 29, disse que sofreu dor
forte e danos físicos duradouros
depois de ficar pendurada por 40
minutos num arreio, com as costas dobradas em posição não-natural. Ela e outra mulher concorriam a US$ 100 mil no evento final
do piloto, feito numa reserva indígena. A mulher que suportasse o
suplício por mais tempo ficaria
com o prêmio.
O programa ainda acrescentou
tensão emocional à provação: seu
parceiro Russell, 33, foi quem segurou a corda que mantinha
Mouser suspensa, o que o tornou
responsável pela agonia da própria mulher.
Quando Mouser finalmente foi
abaixada ao chão, gritando de
dor, recebeu uma injeção de morfina, foi colocada numa maca e levada a um hospital. ""Quando tudo isso vai parar?", indagou Russell. ""Quando alguém morrer?".
Mouser e Russell disseram que
foram pressionados a assinar vários documentos, sempre sob
ameaça de serem eliminados do
concurso. Os advogados da CBS e
do laboratório Rocket Science,
que produz ""Culture Shock", não
quiseram comentar.
Humilhados
James e Laurie Ann Ryan, que
tiveram suas férias em Las Vegas
estragadas, abriram ação contra o
Hard Rock Hotel e a MTV, que
produz o programa ""Harassment" (assédio), responsável pela
pegadinha. O apresentador de
""Harassment", Ashton Kutcher,
descreve o programa como ""um
"Candid Camera" guerrilheiro".
O advogado Jonathan Anschell,
que representa os réus no processo -a MTV, o Hard Rock Hotel e
o próprio Kutcher- não quis comentar o assunto. O advogado do
casal Ryan afirmou que apenas
processos na Justiça são capazes
de moderar a conduta dos produtores de "reality shows".
""Uma coisa como essa é feita
com o objetivo único de constranger, humilhar ou assustar pessoas", disse o advogado. ""Os produtores não se importam com
sentimentos humanos. Não estão
preocupados em agir com ética.
Estão preocupados unicamente
com dinheiro."
Os executivos da televisão adoram os "reality shows" porque
custam pouco. Mas a onda recente de ações na Justiça pode sair caro, e as seguradoras já elevaram
significativamente as apólices
desse tipo de programa.
O advogado de Jill Mouser e
Marcus Russell disse que os produtores dos programas se enganam se pensam que os processos
são apenas um custo implícito em
seu trabalho. ""Foi para isso que
Deus criou a cobrança de danos
punitivos", afirmou.
Para Clay Calvert, professor de
comunicação e direito na Universidade Estadual da Pensilvânia e
autor de ""Voyeur Nation" (nação
de voyeurs), é preciso levar em
conta outras pressões econômicas
também. ""O "reality show" é uma
programação de baixo custo",
disse ele. ""Agora a questão é se os
custos impostos pelos processos
litigiosos vão torná-lo menos
atraente, em termos financeiros.
Mas, ainda assim, custará menos
do que o elenco de "Friends"."
Tradução de Clara Allain
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