São Paulo, domingo, 12 de janeiro de 2003

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TELEVISÃO

Cresce o número de ações na Justiça contra "reality shows" que radicalizam os riscos e a humilhação dos participantes

Pegadinhas são alvo de processos nos EUA

ADAM LIPTAK
DO ""THE NEW YORK TIMES"

As férias que James e Laurie Ann Ryan passaram em Las Vegas em janeiro de 2002 tiveram mais emoções do que eles teriam desejado. Pouco depois de fazer o check-in no Hard Rock Hotel, o casal encontrou um cadáver na banheira. Quando tentou deixar o hotel, foi impedido por seguranças e um paramédico.
Outro que teve uma grande surpresa foi Philip Zelnick, quando tentou embarcar num avião no Arizona. Um guarda da segurança o fez se deitar numa esteira transportadora e passar por uma máquina de raio-X da qual, conta, ele saiu "humilhado e sangrando por todos os lados".
Os dois incidentes foram pegadinhas preparadas por programas de TV. Mas Zelnick e o casal Ryan não acharam graça, tanto assim que processaram os produtores dos programas.
Até algum tempo atrás, processos contra programas de entretenimento que não seguem um roteiro fixo eram abertos por pessoas que se machucavam imitando proezas como as que são realizadas no programa ""Jackass", ou que achavam que as regras de "Survivor" eram aplicadas de maneira injusta. Hoje, porém, advogados de emissoras e executivos de seguradoras dizem que um novo tipo de processo está em alta -aquele que envolve alegações de danos físicos e emocionais sérios sofridos pelos participantes.
Essas ações suscitam, conforme dizia uma delas, aberta no mês passado, a questão de como a lei deve tratar ""o aparente anseio do público de assistir ao sofrimento físico e emocional na vida real". O processo acima citado foi aberto por uma mulher que afirma ter sido gravemente machucada num artefato chamado ""arreio da dor", durante as filmagens do piloto de um seriado da CBS.
O fato é que os processos estão modificando o aspecto econômico dessa espécie de programação, conhecida por custar pouco. ""Era inevitável que o aumento extraordinário dos "reality shows" levasse a um aumento igualmente extraordinário de processos", disse Sandra Baron, diretora-executiva do Centro de Recursos Jurídicos da Imprensa, que reúne informações sobre ações abertas contra a mídia. ""Os custos dos seguros vão subir vertiginosamente, e os dos processos litigiosos, mais ainda."
Bob Banner foi produtor do programa ""Candid Camera" nos anos 60. Ele disse que não se recorda de um único processo judicial aberto contra o programa. "Nós nunca tentávamos constranger as pessoas. Fazíamos coisas muito mais leves."
Mas os tempos mudaram, disse a advogada Gloria Allred, de Los Angeles, que representa os querelantes em dois processos abertos contra "reality shows". As razões disso, para ela, são econômicas e também culturais. ""A "TV humilhação" vende bem."

Sangue
Uma nova versão de "Candid Camera", exibida pela rede Pax, foi responsável pelo incidente no aeroporto de Bullhead City, Arizona, ocorrido no verão americano de 2001 e que deixou machucado o personal trainer californiano Philip Zelnick, 35. Ele contou que se sentiu coagido a deitar-se na esteira transportadora. ""Minha primeira reação foi imaginar que só podia ser brincadeira", contou. O apresentador do programa, Peter Funt, vestia o uniforme de um segurança do aeroporto. Ele garantiu a Zelnick que o pedido era sério. ""Não se brinca assim num aeroporto", disse Funt. Zelnick só ficou sabendo que tinha sido vítima de uma pegadinha quando saiu da esteira, contundido, sangrando e gritando de dor.
O segmento acabou não sendo colocado no ar, mas pegadinhas semelhantes têm feito sucesso, "como paródia da segurança nos aeroportos", disse Funt, em entrevista. Filho de Allen Funt, criador e apresentador original de "Candid Camera", Peter Funt disse que a idéia não é representativa da abordagem mais comumente usada pelo programa. "Parte meu coração ver que estou mergulhado na fossa dos "reality shows"", disse ele. Apesar disso, admitiu que sente a pressão dos modelos de outros programas. ""Fica cada vez mais difícil manter padrões em que acreditamos", disse, "quando nossos concorrentes não hesitam diante de nada e parecem estar fazendo sucesso".
Apesar disso, Funt não expressou grande solidariedade para com Zelnick. ""Machucamos uma pessoa acidentalmente", disse ele. ""Fiquei aliviado por não ter sido mais grave e chateado porque aconteceu, para começo de conversa. Entregamos o problema nas mãos de nossa seguradora. Ofereceram ao rapaz um valor simbólico, alguns milhares de dólares, mas ele recusou."

Suplício
Os "reality shows" que não envolvem câmeras ocultas procuram proteger-se contra possíveis medidas legais, exigindo que seus participantes assinem documentos isentando-os de responsabilidade por possíveis danos.
O casal Jill Mouser e Marcus Russell, de Los Angeles, assinaram papéis desse tipo antes de serem levados de helicóptero, de olhos vendados, para a divisa entre Arizona e Novo México em outubro passado, quando foi filmado o piloto de um novo programa da CBS, ""Culture Shock". Mouser, 29, disse que sofreu dor forte e danos físicos duradouros depois de ficar pendurada por 40 minutos num arreio, com as costas dobradas em posição não-natural. Ela e outra mulher concorriam a US$ 100 mil no evento final do piloto, feito numa reserva indígena. A mulher que suportasse o suplício por mais tempo ficaria com o prêmio.
O programa ainda acrescentou tensão emocional à provação: seu parceiro Russell, 33, foi quem segurou a corda que mantinha Mouser suspensa, o que o tornou responsável pela agonia da própria mulher.
Quando Mouser finalmente foi abaixada ao chão, gritando de dor, recebeu uma injeção de morfina, foi colocada numa maca e levada a um hospital. ""Quando tudo isso vai parar?", indagou Russell. ""Quando alguém morrer?".
Mouser e Russell disseram que foram pressionados a assinar vários documentos, sempre sob ameaça de serem eliminados do concurso. Os advogados da CBS e do laboratório Rocket Science, que produz ""Culture Shock", não quiseram comentar.

Humilhados
James e Laurie Ann Ryan, que tiveram suas férias em Las Vegas estragadas, abriram ação contra o Hard Rock Hotel e a MTV, que produz o programa ""Harassment" (assédio), responsável pela pegadinha. O apresentador de ""Harassment", Ashton Kutcher, descreve o programa como ""um "Candid Camera" guerrilheiro".
O advogado Jonathan Anschell, que representa os réus no processo -a MTV, o Hard Rock Hotel e o próprio Kutcher- não quis comentar o assunto. O advogado do casal Ryan afirmou que apenas processos na Justiça são capazes de moderar a conduta dos produtores de "reality shows".
""Uma coisa como essa é feita com o objetivo único de constranger, humilhar ou assustar pessoas", disse o advogado. ""Os produtores não se importam com sentimentos humanos. Não estão preocupados em agir com ética. Estão preocupados unicamente com dinheiro."
Os executivos da televisão adoram os "reality shows" porque custam pouco. Mas a onda recente de ações na Justiça pode sair caro, e as seguradoras já elevaram significativamente as apólices desse tipo de programa.
O advogado de Jill Mouser e Marcus Russell disse que os produtores dos programas se enganam se pensam que os processos são apenas um custo implícito em seu trabalho. ""Foi para isso que Deus criou a cobrança de danos punitivos", afirmou.
Para Clay Calvert, professor de comunicação e direito na Universidade Estadual da Pensilvânia e autor de ""Voyeur Nation" (nação de voyeurs), é preciso levar em conta outras pressões econômicas também. ""O "reality show" é uma programação de baixo custo", disse ele. ""Agora a questão é se os custos impostos pelos processos litigiosos vão torná-lo menos atraente, em termos financeiros. Mas, ainda assim, custará menos do que o elenco de "Friends"."


Tradução de Clara Allain


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