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O DNA da escravidão
Projeto usa genética para que afro-americanos conheçam seus antepassados
MARIA BRANT
DA REDAÇÃO
Se Alex Haley tivesse começado
hoje, talvez não precisasse de tantos anos para reconstituir as origens de sua família. O jornalista
americano passou 12 anos pesquisando exaustivamente a história
de seus ancestrais antes de publicar "Raízes", em 1976, pelo qual
ganhou o Prêmio Pulitzer. A obra
de Haley (1921-1992) narra a saga
de seis gerações, desde o nascimento na costa ocidental da África, em 1750, de um ancestral mais
tarde vendido como escravo, até a
morte de seu pai em Arkansas,
mais de dois séculos depois.
A escritora nova-iorquina Pearl
Duncan, 52, demorou pouco mais
de um ano para identificar o vilarejo exato, em Gana, de onde partiram seus ancestrais, também
vendidos como escravos e levados
para os EUA. O segredo de seu sucesso: a análise genética.
Duncan já desconfiava de que
suas origens fossem ganenses,
pois um linguista identificara "as
palavras estranhas" usadas por
sua mãe como sendo de um dialeto falado no país africano, mas só
pôde confirmar suas suspeitas
após comparar amostras de DNA
de descendentes de ganenses com
as suas (leia texto nesta página).
Duncan foi a primeira norte-americana a rastrear suas origens
usando a genética, em 2000. Desde então, três universidades dos
EUA iniciaram programas de
análise de DNA voltados especificamente para afro-americanos
descendentes de escravos.
Rick Kittles, da Universidade
Howard, causou polêmica no ano
passado ao anunciar que abriria
seu projeto de identificação de
raízes geográficas por DNA ao
público: por cerca de US$ 300,
qualquer afro-americano poderia
em breve localizar a região exata
de onde vieram seus ancestrais.
A controvérsia surgiu da necessidade de pagamento por um serviço que, na verdade, contribuiria
para sua pesquisa. Kittles se defende dizendo que não tem financiamento governamental e, portanto, os custos de coleta de material, exames e mão-de-obra têm
de ser cobertos de alguma forma.
O Projeto DNA das Raízes Afro-Americanas, programa conjunto
da Universidade de Boston e da
Universidade da Carolina do Sul,
está montando um banco de dados genético para que afro-americanos possam comparar seu DNA
ao de africanos e, dessa forma,
identificar de que região da África
vieram seus antepassados.
Um teste inicial analisou o DNA
de afro-americanos da Carolina
do Sul e confirmou que 80% deles
têm características típicas do
DNA de indivíduos da África ocidental. "Esperamos ser capazes
de conectá-los a famílias específicas nos próximos anos", disse à
Folha Bruce Jackson, da Universidade de Boston, que coordena o
projeto com Bert Ely, da Universidade da Carolina do Sul.
Eles coletaram amostras no Senegal e em Serra Leoa e, em breve,
farão o mesmo na Nigéria.
A análise de DNA, nesse caso, é
gratuita, mas ainda não está aberta ao público em geral. Por enquanto, as amostras utilizadas são
de parentes de cerca de 300 alunos
afro-americanos do ensino fundamental, que coletam eles mesmos células da bochecha de seus
parentes. "Crianças africanas e da
ilha de Monserrat, no Caribe, devem passar a participar do projeto
em 2003", afirmou Jackson.
Mas, mesmo depois que o banco de dados estiver completo, isso
não significa que qualquer afro-americano que forneça uma
amostra de seu DNA poderá encontrar "parentes" na África.
O sistema de identificação usa
como base o cromossomo Y e o
DNA mitocondrial. O cromossomo masculino, Y, é transmitido
pelo pai apenas a seus filhos homens. O DNA mitocondrial é passado pela mãe a seus filhos e filhas, mas só as mulheres podem
transmiti-lo. O cromossomo Y e
DNA mitocondrial permitem,
portanto, que se trace uma linha
direta de descendência materna
ou paterna. Ambos sofrem muito
poucas mudanças ao longo do
tempo, e pequenas mutações típicas de certas populações permitem que se ligue o gene de uma
pessoa a uma certa região.
A precisão dos resultados depende de cada sequência de DNA
e das amostras de comparação.
"Um tipo de DNA de mitocôndria
pode ser encontrado em um único país enquanto outro pode ser
encontrado em uma região muito
grande que inclui mais de uma
dúzia de países", disse Ely, da
Universidade da Carolina do Sul.
Além disso, afirmam os pesquisadores, não há garantia de que uma
correspondência será encontrada
para qualquer cromossomo Y ou
DNA mitocondrial em particular.
Mas qual é o interesse de se descobrir de onde partiram os ancestrais? "O sentimento de identidade, de pertencer a um grupo", dizem Duncan, Jackson e Ely.
"Sinto-me muito mais conectada à família humana, pois sei exatamente onde meus ancestrais se
encaixam", afirmou Pearl.
Mas o DNA, sozinho, pode, na
melhor das hipóteses, identificar
uma localidade geográfica. Pearl
só identificou traços culturais específicos de sua família porque
utilizou a linguística e a história.
"Todas as iniciativas para saber
mais sobre o passado são importantes, incluindo a análise de
DNA. Mas sou cético a respeito de
quanto pode ser aprendido dessa
forma", disse à Folha o historiador Paul Lovejoy, professor da
Universidade York, em Toronto
(Canadá) e diretor do Centro
Harriet Tubman para o Estudo da
Diáspora Africana. "A cultura não
é geneticamente determinada."
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