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CÁUCASO
Para especialistas, comunidade internacional hesita em condenar ações russas porque seus interesses não estão em jogo
Ocidente ignora drama tchetcheno, dizem analistas
MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO
A dificuldade da comunidade
internacional em criticar abertamente as atrocidades cometidas
por forças russas contra civis e
guerrilheiros tchetchenos e em
pressionar Moscou a admitir negociar uma solução política para a
questão tem levado organizações
de defesa dos direitos humanos a
exigir uma real tomada de posição dos líderes ocidentais. Por
ora, porém, os esforços são vãos.
"Condenamos veementemente
o terrorismo tchetcheno. É ignóbil usar civis, sobretudo crianças,
como moeda de troca. Contudo é
notório que as tropas russas continuam a cometer violações aos
direitos humanos impunemente,
já que o governo não julga os suspeitos russos. Tortura generalizada, incluindo casos de estupro, assassinatos extrajudiciais, desaparecimento de suspeitos e maus-tratos se tornaram rotina na região", explicou à Folha Diederik
Lohman, especialista em Tchetchênia da Human Rights Watch.
"O pior é que esse fenômeno está se alastrando pela vizinha Inguchétia. Mesmo assim, a comunidade internacional hesita em condenar claramente as ações russas,
pois seus interesses diretos não
estão em jogo. Além disso, a Rússia tem poder de veto no Conselho de Segurança da ONU, o que,
na prática, torna inviável uma
condenação formal à ação russa
no órgão. Assim, só resta o fator
humanitário", acrescentou.
Mas o fator humanitário não
compele as potências a tomar
uma atitude drástica. "Quando
questões econômicas e de segurança, além dos direitos humanos, demandam uma resposta
enérgica, como ocorreu quando o
Iraque invadiu o Kuait [1990], o
Ocidente age", avaliou Andrew
Bennett, especialista em questões
russas e professor da Universidade de Georgetown (EUA).
"Na república independentista
da Tchetchênia, o conflito ainda
não afeta os interesses fundamentais dos países ocidentais nem
ameaça disseminar-se por todo o
Cáucaso. A preocupação torna-se, portanto, só humanitária. Para
a comunidade internacional, entretanto, as relações com Moscou
e os vultosos negócios envolvendo a Rússia são prioritários."
"Embora Colin Powell [secretário de Estado] tenha sinalizado,
após a tragédia da escola de Beslan, que os EUA apoiariam uma
solução negociada, o presidente
[George W.] Bush já disse várias
vezes que apóia seu colega russo,
Vladimir Putin, que foi o arquiteto da segunda ofensiva russa na
Tchetchênia [1999], porque tem
outras prioridades em relação a
Moscou, principalmente no que
se refere à guerra ao terror, à contenção dos preços do petróleo e à
construção do sistema de defesa
antimísseis", analisou Bennett.
Com efeito, desde o 11 de Setembro, Putin busca associar sua cruzada contra os guerrilheiros
tchetchenos à guerra ao terrorismo global protagonizada por
Washington, sustentando que a
rede Al Qaeda apóia as ações dos
terroristas islâmicos tchetchenos.
Ademais, a recente alta do petróleo tornou a posição de Putin
ainda mais confortável -Rússia e
a Arábia Saudita são as maiores
produtoras mundiais de petróleo
e podem ajudar o governo dos
EUA a conter a subida do preço.
De acordo com Mark Kramer,
diretor do Projeto de Estudos sobre a Guerra Fria da Universidade
Harvard (EUA), a principal razão
da passividade dos Estados mais
influentes, como os EUA, é a
"constatação irrefutável" de que a
Rússia ainda dispõe de milhares
de armas nucleares e de um dos
Exércitos mais fortes do planeta,
embora minado pelos dez anos de
confrontos na Tchetchênia.
Na última década, cerca de 15
mil militares russos morreram no
Cáucaso por conta do conflito na
república secessionista. Durante
os dez anos em que a Rússia enfrentou os mujahidin [guerrilheiros islâmicos] no Afeganistão
[1979-89], por volta de 12 mil soldados russos morreram.
"Na lógica geopolítica atual, em
que o combate ao terrorismo se
transformou no centro das atenções, a Tchetchênia pertence à
Rússia e constitui um problema
"interno", como Kosovo é parte da
Sérvia e não vai se separar dela.
Embora as violações cometidas
pelos russos na Tchetchênia sejam mais graves e freqüentes que
as praticadas pelos sérvios em Kosovo [1999], o Ocidente não cogita
pressionar Moscou militarmente.
A diferença é simples: a Rússia
tem armas nucleares, a ex-Iugoslávia não as tinha", disse Kramer.
O americano James Critchlow,
especialista em Rússia, e o russo
Vladimir Kramnik, da Universidade Pública de São Petersburgo,
por sua vez, crêem que as condições geográficas da Tchetchênia
impeçam uma ação concreta internacional.
"A região é muito remota e torna uma verdadeira intervenção
militar proveniente do exterior
muito difícil. A pressão psicológica ainda é a melhor opção", apontou Kramnik.
Por enquanto, contudo, nem isso tem sido feito. Putin, que utilizou como pretexto uma série de
atentados a bomba em território
russo e a invasão do Daguestão
por rebeldes tchetchenos para invadir a república secessionista em
1999, mantém-se inflexível no que
concerne a admitir negociar com
os guerrilheiros tchetchenos.
"O Ocidente tem de separar os
terroristas, como Shamil Basayev,
dos tchetchenos que têm legitimidade política e, portanto, podem
negociar com os russos, como o
ex-presidente Aslan Maskhadov.
Será preciso encontrar interlocutores entre os tchetchenos. Caso
contrário, a "islamização" da causa
tchetchena se tornará ainda mais
clara, o que terá resultados trágicos", salientou Bennett.
De fato, quando do primeiro
conflito recente (1994-96), a causa
tchetchena tinha tintas nacionalistas. Mas isso vem mudando nos
últimos anos. "Desde 1999, os rebeldes tchetchenos vêm sofrendo
forte influência de militantes e de
terroristas islâmicos. Tradicionalmente, os tchetchenos são muçulmanos moderados. Mas a necessidade de obter, entre outras coisas, novos canais de financiamento levou os guerrilheiros a se associarem a terroristas islâmicos",
afirmou Lohman.
Com isso, a Rússia recusa-se a
negociar, tratando todos os tchetchenos como terroristas e colocando pessoas sem legitimidade
no poder na república separatista
para consolidar seu controle sobre ela. Assim, o Ocidente deve
pressionar Putin a encontrar parceiros para negociar, pois Maskhadov não é visto por Moscou
como um interlocutor palatável.
Ademais, o argumento de que a
independência ou uma maior autonomia da Tchetchênia poderia
provocar um efeito dominó na região é refutado pela maioria dos
especialistas. "A Tchetchênia é
um caso excepcional. Os moradores do vizinho Daguestão não têm
interesse em buscar a independência e preferem que os russos
os protejam de militantes islâmicos tchetchenos ou de outras
áreas", indicou Kramer.
"Outras repúblicas já conseguiram solucionar a questão da autonomia pacificamente. O Tatarstão
[centro-oeste do país], também
de maioria muçulmana, é um ótimo exemplo, visto que prosperou
desde o colapso da URSS, em
1991", apontou Critchlow.
Em cinco anos de combates,
cerca de 50 mil tchetchenos (de
uma população original de 1,2 milhão), a maioria entre a população
civil, morreram. Segundo organizações de defesa dos direitos humanos, como a Anistia Internacional e a Human Rights Watch,
os países mais poderosos têm de
agir para pôr fim às atrocidades.
Os rebeldes, aliás, também não estão isentos de culpa. O trágico
desfecho do seqüestro na escola
de Beslan, na Ossétia do Norte,
ilustra bem essa constatação.
Kramer vai mais longe e defende a criação de um tribunal internacional para julgar crimes cometidos por ambas as partes na
Tchetchênia, embora saiba que,
no contexto atual das relações internacionais, isso seja inviável.
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