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ARTIGO
Para que o mundo não volte ao século 19
HENRY A. KISSINGER
Os rivais europeus deveriam parar de encorajar a tendência de
suas mídias de descrever a administração americana como sendo formada por figuras semelhantes
a Rambo
Enquanto a atenção do
mundo se volta à reconstrução do Iraque no pós-guerra, os
EUA se vêem obrigados a debruçar-se sobre um problema maior:
como lidar com os deslocamentos
tectônicos no interior da aliança
atlântica revelados pelos lances
diplomáticos pré-conflito.
As duas aliadas mais fortes dos
EUA na Europa continental,
França e Alemanha, se opuseram
ativamente a uma política pela
qual o presidente americano se
dispunha a arriscar vidas americanas e buscaram apoio no resto
do mundo para a sua oposição.
Esse cisma atraiu a Rússia para
o confronto mais explícito com os
EUA desde o final da Guerra Fria.
E esse padrão se repete na polêmica surgida com esses aliados em
torno do papel que a ONU deve
exercer no pós-guerra iraquiano.
A continuação dessas tendências pode provocar a erosão progressiva da aliança militar ocidental, que durante meio século foi a
base da política externa americana. O fim da Guerra Fria e de uma
ameaça comum foi pouco a pouco solapando muitas das premissas subjacentes da Otan. Apesar
disso, os EUA continuaram por
uma década dominados pelo hábito, enquanto, sob a superfície,
muitos na Europa se inquietavam
diante da crescente disparidade
de poderio militar e crescimento
econômico entre os dois lados do
Atlântico e também diante da
afirmação agressiva dos interesses nacionais feita pela nova administração americana.
O período que se seguiu aos ataques terroristas de 11 de setembro
de 2001 trouxe os ressentimentos
latentes à superfície, sob a bandeira do unilateralismo versus multilateralismo. A solidariedade inicial suscitada pela imagem da
América como vítima se enfraqueceu quando os EUA conferiram uma feição militar ao desafio,
declarando guerra ao terrorismo.
E desapareceu com a elaboração
da estratégia da ação preventiva.
Embora tivesse se tornado necessária em função das ameaças à
segurança lançadas por grupos
particulares não afetados pela dissuasão, na medida em que não
têm território a defender, e inacessíveis a quaisquer esforços diplomáticos, porque buscam a vitória total, e embora essa ameaça
tivesse sido agravada pelo perigo
de armas de destruição em massa
caírem nas mãos de terroristas ou
de Estados irresponsáveis, a ação
preventiva contrariava os princípios de soberania. Esses princípios justificavam a guerra só nos
casos de resistência contra uma
agressão ou na iminência de um
ataque. Alguns aliados europeus
resistiam à idéia implícita de que
os EUA poderiam modificar por
decreto princípios estabelecidos.
Razões profundas
Entretanto, mesmo admitindo
que, nas condições de emergência
que se seguiram ao 11 de setembro, os EUA se apressaram a agir
sem consultas prévias com seus
aliados e, em alguns momentos,
pareceram exagerar ao retratar-se
como estando sempre certos, a
pressa e o gosto com que França e
Alemanha contestaram a estrutura da aliança que garantiu ao Ocidente a vitória na Guerra Fria é algo que tem causas profundas.
O fato de a França e a Alemanha
anunciarem que votariam contra
os EUA no Conselho de Segurança já era algo sem precedentes.
Mas mesmo isso perdeu importância quando comparado ao intenso lobby diplomático que os
dois países fizeram contra a política americana em capitais distantes, ignorando meio século de tradição de aliança -e chegando ao
ponto de criar a impressão, entre
os líderes de países do Leste Europeu, que a cooperação com os
EUA na guerra poderia dificultar
sua entrada na União Européia.
Com atitude de contestação
quase prazerosa, os chanceleres
francês e alemão convidaram seu
colega russo, antigo adversário da
Otan, a ficar ao seu lado em Paris
quando repudiaram uma política
que era prioridade número um de
seu aliado de meio século.
Foi um gesto saído diretamente
do livro de manobras do cardeal
Richelieu, do século 17, que combateu a superpotência de então, o
império dos Habsburgos, com
uma série de coalizões sempre
mutantes, até que a Europa central ficou dividida e a França ganhou destaque. Mas isso foi antes
da era do terrorismo e das armas
de destruição em massa, numa
época em que a França ainda possuía meios para colocar em prática suas táticas implacáveis.
A irritação suscitada pela estratégia americana não poderia ter
gerado uma revolução diplomática de tais proporções se as bases
tradicionais da aliança não tivessem sido enfraquecidas pelo desaparecimento de uma ameaça comum, agravado pela ascensão ao
poder de uma geração que cresceu durante a Guerra Fria e dá as
conquistas dela como garantidas.
Essa geração não tomou parte
da libertação da Europa na 2ª
Guerra Mundial nem de sua reconstrução sob o Plano Marshall.
Em vez disso, ela se recorda dos
atos contra a Guerra do Vietnã e
do posicionamento de mísseis na
Europa. Na Alemanha, essa geração se sente frustrada com a crise
econômica aparentemente permanente e com o processo de unificação que levou habitantes da
ex-Alemanha Oriental a sentir-se
mais ocupados do que libertados.
O "gaullismo", que fazia questão de uma Europa com identidade distinta da identidade dos
EUA, não teve o apoio de nenhum
dos principais países da Europa
até que a crise do Iraque fez com
que o presidente Jacques Chirac
pudesse atrair a Alemanha, pelo
menos temporariamente, para a
versão "gaullista" da Europa.
Chirac explorou o temor de isolamento sentido pelo chanceler
(premiê) Gerhard Schröder, devido ao distanciamento dos EUA
provocado por sua campanha
eleitoral pacifista e antiamericana, para atrair a Alemanha para
um caminho evitado por todos os
outros chanceleres alemães anteriores, que sempre fizeram questão de tentar diminuir as divergências entre a Europa e os EUA.
Essa convulsão diplomática dividiu a Europa entre os países que
buscam a identidade européia por
meio do confronto com os EUA,
de um lado, e, do outro, aqueles
que, liderados pelo Reino Unido e
pela Espanha, a vêem como instrumento de cooperação.
Esses diversos cismas provocaram uma inversão ao menos temporária em Moscou. O presidente
Vladimir Putin, que chegou ao
poder quase ao mesmo tempo
que George W. Bush, procurou
uma saída do colapso catastrófico
da posição internacional da Rússia após a Guerra
Fria, concentrando a sua atenção
na economia doméstica e na tentativa de realizar o
status ainda remanescente da Rússia como grande
potência por meio
de consultas demonstrativas com
os EUA, especialmente sobre o tema do islamismo.
Mas a harmonia
externa levou
americanos a perderem de vista a
experiência dolorosa pela qual a
Rússia passava: a perda de seu status de superpotência e a desintegração de seu império histórico. A
Rússia não tinha alternativa senão
aceitar a sua nova fraqueza, simbolizada pela revogação do Tratado Antimísseis Balísticos e pela
ampliação da Otan até as suas
fronteiras, mas ela o fez a contragosto, rangendo os dentes.
É possível que, se as consultas
com os EUA tivessem tido alcance
maior e sido menos centradas na
agenda americana, a Rússia tivesse encontrado alguma compensação por sua perda
de status e se
mostrado mais
relutante em mudar de rumo. Mas,
da maneira como
as coisas aconteceram, a oferta
formulada pela
França e pela Alemanha de uma
frente unida contra os EUA na
questão do Iraque
agradou ao sentimento nacionalista russo e ofereceu ao país a perspectiva de novas
opções, não dependentes da boa
vontade americana. Seis meses
depois que a expansão da Otan
admitiu a entrada de três ex-repúblicas soviéticas na aliança, o
chanceler russo pôde demonstrar
à população de seu país a aparente inutilidade da Otan, ao postar-se ao lado de seus colegas francês
e alemão num gesto proclamado
como sendo símbolo da emancipação deles da política norte-americana.
Divisão européia
Se a tendência atual nas relações
transatlânticas se mantiver, o sistema internacional sofrerá modificações fundamentais. A Europa
se dividirá em dois grupos definidos por suas atitudes em relação à
cooperação com os EUA. A Otan
vai mudar de caráter e tornar-se
veículo daqueles que continuam a
valorizar o relacionamento transatlântico. A ONU, tradicionalmente um mecanismo com o qual
as democracias reafirmavam as
suas convicções contra o perigo
de agressão, vai transformar-se,
em lugar disso, num fórum no
qual aliados implementam teorias sobre como criar um contrapeso capaz de equilibrar o peso da
""hiperpotência" americana.
A discussão em torno da administração do Iraque no pós-guerra ilustra esses perigos. Após um
período de restauração da segurança e de busca por armas de
destruição em massa, é do interesse dos EUA não exigir um papel exclusivo numa região situada
no coração do mundo islâmico,
convidando outros países a compartilhar a governança do Iraque
-primeiro seus parceiros na coalizão e depois, progressivamente,
outros países, além de um papel
significativo à ONU.
Mas a proposta do chanceler
francês, que ganhou o apoio tácito de Berlim, é que a presença
americana no Iraque não tenha
legitimidade enquanto não for
confirmada por processos semelhantes àqueles que antecederam
a guerra, o que teria o efeito de
ampliar as rachaduras já existentes. O trabalho de reconstrução
do Iraque no pós-guerra terá de
reconhecer que uma base internacional ampla é desejável, mas
também admitir a imprudência
de se utilizar o multilateralismo
como slogan e a ONU como instituição para isolar os EUA.
Aconteceram coisas demais para que seja possível simplesmente
voltar aos ""negócios de sempre".
A revitalização do relacionamento transatlântico será crucial se
quisermos que as instituições globais funcionem efetivamente e
que o mundo deixe de retroceder
para uma política de poder ao estilo do século 19. E essa revitalização precisa ser baseada num senso de destino comum, em lugar de
buscar transformar a aliança numa rede de segurança ""à la carte".
Se não for possível encontrar
uma base comum -ou seja, se a
diplomacia pré-guerra do Iraque
se tornar o padrão comum-, os
EUA serão levados a montar coalizões criadas especificamente para cada situação, tendo como parceiros os países que formam o núcleo da Otan que permanece comprometido com o relacionamento
transatlântico. Seria um fim lamentável para uma parceria que
se manteve por meio século.
É chegada a hora de pôr um fim
à discussão sobre unilateralismo
versus multilateralismo e nos
concentrarmos sobre a substância. Nossos adversários europeus
nas controvérsias recentes deveriam parar de encorajar a tendência de suas mídias de descrever a
administração americana como
sendo formada por figuras semelhantes a Rambo, sedentas de
guerra, e os EUA como se constituíssem um obstáculo institucional à realização das metas da Europa, em lugar de parceiro na
conquista de metas comuns.
De sua parte, a política americana precisa acabar com o desnível
entre a filosofia global exposta em
nível presidencial e a tática de curto prazo da diplomacia cotidiana.
Para que os parceiros se tornem
mutuamente mais previsíveis, são
necessárias consultas mais intensas, especialmente em relação aos
objetivos de médio prazo. E temos uma agenda extensa pela
frente: frear a proliferação das armas de destruição em massa, discutir as implicações políticas da
globalização, acelerar a reconstrução do Oriente Médio. Já é
mais do que hora de iniciar uma
discussão dos princípios que reconheça a necessidade ocasional
de uma ação preventiva sem, entretanto, permitir que cada país a
defina por conta própria.
Essas tarefas exigem uma base
que ultrapasse a região atlântica.
É provável que o eixo alemão-franco-russo seja transitório. As
avaliações que levaram Putin a
buscar um relacionamento estreito entre EUA e Rússia vão se manter e já encontraram expressão
em várias declarações recentes do
presidente russo. Quando as tentações da crise iraquiana tiverem
passado, a Rússia vai constatar
que constituíram um caso à parte
e que seu interesse maior continua a ser manter a cooperação
russo-americana. O desafio será
conferir a essas convicções um caráter recíproco que seja menos
dependente de consultas ""ad
hoc". Será preciso um diálogo sistemático sobre problemas globais. O encontro de Condoleeza
Rice com Putin pode constituir
um primeiro passo nessa direção.
O país que menos alterou a sua
política sob o impacto do Iraque é
a República Popular da China. Os
processos inacabados de reforma
doméstica e mudanças maciças
em sua liderança levaram a China
a comprometer-se com um longo
período de paz e ausência de tensões. Assim, o país que, na fase
inicial da administração Bush,
muitos enxergam como adversário estratégico transformou-se
em parceiro construtivo de longo
prazo. Isso será especialmente
verdade se a China e os EUA conseguirem chegar a um acordo
quanto a uma abordagem multilateral do problema nuclear coreano e evitarem erros de cálculo
com relação a Taiwan.
A preeminência militar americana é verdade inegável e continuará a sê-lo no futuro previsível.
Uma política de equilíbrio de poder empreendida por aliados não
poderá mudar essa realidade. Mas
os EUA podem esforçar-se para
traduzir a sua hegemonia num fomento sistemático do consenso
internacional. Se seus aliados europeus agirem com esse espírito,
será possível evitar que discussões
sobre unilateralismo e multilateralismo se transformem em profecias que se realizam.
Tradução Clara Allain
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