|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
GEOPOLÍTICA
Império americano está perto de seu fim, pois país não tem mais poder econômico do passado, segundo Emmanuel Todd
EUA estão em declínio, diz pensador francês
SILVIA BITTENCOURT
FREE-LANCE PARA A FOLHA
Foi na década de 70 que o historiador e demógrafo francês Emmanuel Todd previu, no seu livro
"A Queda Final", a decomposição
do império soviético. Agora, quase 30 anos depois, é o império
americano que aparece, na visão
de Todd, com seus dias contados.
Com "Após o Império: Ensaio
sobre a Decomposição do Sistema Americano", o historiador
vem conquistando as listas dos livros mais vendidos em vários países europeus.
Segundo Todd, os EUA dependem, do ponto de vista econômico, cada vez mais do restante do
mundo. O restante do mundo,
por sua vez, não precisa mais dos
EUA. Para esconder essa dependência econômica crescente, os
EUA tentariam mostrar sua força,
buscando conflitos militares com
países menores. A luta contra o
terrorismo internacional seria,
então, um "mito" criado pelos
EUA. E a Guerra do Iraque seria
uma "encenação".
"Após o Império" foi lançado
em 2002 pela editora Gallimard e
logo se tornou um best-seller na
França. Foi traduzido e lançado,
neste ano, em 11 línguas. No Brasil, ele será editado pela Record.
Sobre o suposto declínio americano, Todd falou à Folha, por telefone, do Instituto Nacional de
Estudos Demográficos, no qual
trabalha, em Paris.
Folha - Os EUA saíram da guerra
contra o Iraque com uma vitória soberana. Isso combina com sua teoria de que os EUA estão perdendo
seu poder no mundo?
Emmanuel Todd - O Iraque é um
país subdesenvolvido, com cerca
de 25 milhões de habitantes, saindo de mais de dez anos de um embargo econômico. Isso ilustra
uma das teses do meu livro, segundo a qual essa guerra foi uma
espécie de "micromilitarismo teatral". Ou seja, a América tem de
atacar países insignificantes de algumas regiões do planeta, tentando mostrar que ela é necessária
para o mundo.
Antes da guerra, já observamos
uma certa desintegração do sistema diplomático americano. A
Alemanha declarou-se contra a
guerra, o que foi um dos eventos
históricos mais importantes desse
processo. Afinal, esperava-se uma
certa submissão da Alemanha.
Mas, com o "não" dos alemães, foi
possível o "não" da França. O "não"
da Turquia também foi importantíssimo, pois mostrou a maior
proximidade do país com a Europa do que com os EUA.
A questão é: por que ficou fácil
dizer "não'? Porque os EUA não
têm mais o mesmo poder econômico-financeiro do passado. O dinheiro está hoje na Europa, o que
torna difícil para eles fazer ameaças. Agora, após a guerra, o que se
vê é a inabilidade dos americanos
em controlar o Iraque. Com menos poder econômico, ficará difícil manter o poder militar.
Folha - O sr. prevê um papel forte
da Europa e da Rússia frente ao declínio americano. Mas a Europa,
por exemplo, saiu completamente
dividida da Guerra do Iraque. A
União Européia não tem nem sequer uma política externa comum.
Por que o sr. é tão otimista com o
poder da Europa?
Todd - A divisão da Europa na
Guerra do Iraque apareceu como
algo muito importante, como
uma coisa terrível. Mas a América
criou um mito em torno do Iraque, apresentando a guerra como
uma coisa importantíssima. Mas
eu acredito que ela tenha sido
uma encenação, o que torna as
discordâncias sobre a guerra algo
muito superficial. Sou muito otimista com o futuro da Europa.
Enquanto a Alemanha era um
país submisso, aceitando todas as
decisões de Washington, não era
possível haver uma Europa livre e
emancipada. Nada é possível sem
a Alemanha pela simples razão de
que ela é a maior força industrial
do continente e uma das maiores
do mundo. Agora a Alemanha está livre. Com isso, a Europa também está livre. Houve desordem,
uma periferia em discordância.
Mas a população européia estava
totalmente unida na questão do
Iraque. Os governos da Alemanha
e da França acabaram representando os europeus.
Folha - A ONU também saiu enfraquecida da guerra. Como sua autoridade pode ser restaurada?
Todd - Não acho que a ONU tenha se enfraquecido. Se houvesse
um grande problema com o Iraque, poderíamos pensar que a
ONU tivesse fracassado. Mas, até
agora, não se encontraram armas
de destruição em massa no Iraque. Não dá para afirmar, então,
que a ONU se mostrou incapaz de
resolver um problema que na verdade nunca existiu. Mas, se a
América se tornar o grande problema do mundo -o que é uma
das teses centrais do meu livro-,
a ONU terá de fazer algo.
Ela terá de impedir que os EUA
atuem sozinhos. A ONU tem sua
sede em Nova York, e acho, por
exemplo, que possa ficar difícil
para ela trabalhar lá, próxima dos
serviços de informação americanos. A ONU deveria, por exemplo, ter coragem de ameaçar os
EUA com a mudança de sua sede,
talvez para a Europa, talvez para
um país como a Suíça. Penso que
a América ainda tem um medo
enorme de se isolar, de ser jogada
para a periferia do mundo.
Folha - O sr. já foi um grande
crítico da União Européia, publicando até mesmo um livro contra a introdução da moeda comum, o euro. O que o fez mudar
de idéia?
Todd - Primeiramente, porque
o euro começou a cair no mercado financeiro. Era uma moeda
bonita, mas sem eficiência. Mas a
principal razão foram os EUA. No
início dos anos 90, logo após o colapso da União Soviética, eu confiava nos EUA, não via a necessidade de combater o poder americano. Mas foi o comportamento
estranho e predador dos EUA que
me fez ver a necessidade de a Europa se tornar uma nova potência.
Folha - Os EUA deixaram então de
ser um exemplo de democracia para se tornarem uma ameaça?
Todd - Por muito tempo, a América foi um país independente,
com uma economia poderosa,
útil para o mundo. Isso foi importante na luta contra sistemas totalitários, como o nazismo. Agora
vivemos uma nova situação, na
qual os EUA são dependentes do
mundo. Fica fácil medir isso, observando o crescimento do déficit
comercial dos EUA, hoje em torno de US$ 500 bilhões.
Ele torna os americanos dependentes de financiamento externo.
O "Velho Mundo", principalmente
a Europa, precisou da América,
não se pode negar. Mas, aos poucos, não precisa mais. A Europa
Ocidental é muito próspera, estável. A Rússia deixou de ser uma
ameaça para se tornar uma parceira. A mídia, na cobertura da
Guerra do Iraque, nos fez pensar
que a América é o centro do mundo. Mas a verdade é que, do ponto
de vista geopolítico, os EUA podem ser terríveis para o mundo.
Os líderes americanos devem
pensar: "O que fazer se nos tornamos dependentes do ponto de
vista econômico, se não somos
mais necessários no mundo?".
Folha - O sr. diz que vários países
islâmicos estão passando por um
processo demográfico e educacional que, necessariamente, os levará, no futuro, para a democracia.
Isso significa que uma boa parte do
mundo poderia tornar-se democrática sem intervenção de fora. Não é
uma visão otimista demais?
Todd - Não falo tanto em democracia, mas em sistemas representativos. A tese já vem de [Francis]
Fukuyama, autor de "O Fim da
História". Particularmente, creio
que esteja havendo muito progresso em vários países. Em períodos transitórios, as taxas de
analfabetismo sobem, assim como as taxas de natalidade, e acontecem as crises, que fazem parte
do processo de transformação de
populações tradicionais. É quando ocorrem, por exemplo, revoluções. Depois disso, se vê uma fase
de estabilização, na qual emergem formas políticas pluralistas.
O Irã é um exemplo óbvio. O
país passou por uma revolução
que, apesar de religiosa, não impediu a modernização. Durante o
regime do aiatolá Khomeini, parou de cair a taxa de natalidade,
que hoje é de 2,1 crianças por mulher, a mesma registrada nos
EUA. É evidente que o regime está
mudando aos poucos. Há uma esquerda e uma direita, reformistas
e conservadores. Isso não significa que o país conte com um regime democrático perfeito. Mas
acredito que, sem intervenção externa, o Irã se torne um dos primeiros países democráticos do
mundo islâmico. É difícil para os
EUA admitir esse processo de democratização. Para eles, isso significaria o fim da necessidade de
defender o mundo militarmente.
Folha - O sr. considera o terrorismo internacional um "mito" ou um
"fenômeno transitório". Mas grupos terroristas continuam matando e também agem em territórios
ocidentais. Como o Ocidente deve
lidar com o terrorismo?
Todd - Não digo que o terrorismo não existe. Mas que ele está
concentrado principalmente em
países islâmicos e que isso tem a
ver com aquelas crises transitórias, as fases de transformação
que já mencionei. Eu diria até que
a única ameaça que vem do mundo islâmico é o terrorismo, pois lá
não há nenhum Estado forte do
ponto de vista militar. Nos últimos meses, ficou evidente a inabilidade do terrorismo islâmico em
atuar fora de seus países.
Houve os ataques de 11 de setembro de 2001, que foram terríveis, mas, desde então, não ocorreu nada no Ocidente. Houve terrorismo em Marrocos, na Tunísia, na Indonésia, no Paquistão.
Isso prova para as autoridade ocidentais que é suficiente trabalhar
com a polícia, com os serviços de
informação etc. Não se trata de
uma ameaça global, não há necessidade de armas pesadas.
Folha - O que os americanos devem fazer para evitar este suposto
declínio?
Todd - Trabalhar. Eles devem se
concentrar na indústria, na produção. Hoje eles consomem sem
produzir. A Europa teve várias experiências de declínio, por exemplo, depois das grandes guerras. A
Europa tem uma longa história e
sobreviveu a muitas guerras.
Mas a América é um país jovem,
sem experiências. Nem sabemos
-e aqui falo como historiador-
se o país conta com uma sociedade estável. Não sabemos, então, se
os americanos terão habilidade
suficiente para resolver um problema dessa grandeza. A América
deve aceitar os novos desafios,
que não são de ordem militar,
mas econômica.
Folha - Alguns críticos americanos citam seu livro como um exemplo do antiamericanismo na Europa, particularmente na França. Como o sr. responderia a eles?
Todd - É um absurdo classificar-me dessa forma, pois, até alguns
anos atrás, eu era um grande admirador dos EUA. Talvez até por
isso eu tenha menosprezado a
questão européia. Venho de uma
família judaica, que se refugiou
nos EUA durante a guerra. Minha
formação em história concluí em
Cambridge, na Inglaterra. A família Todd é conhecida em Paris por
sua proximidade com os anglo-saxões e com a América. Mas não
gosto de falar de questões pessoais. O importante é a argumentação que está no livro.
Folha - O sr. faz, em seu livro, algumas menções à América Latina e
ao Brasil. Como o sr. vê o futuro da
América Latina ante esse suposto
declínio americano?
Todd - Não sou um especialista,
vou falar de forma geral. Estou
impressionado com a evolução da
região. Por exemplo, com a queda
das taxas de analfabetismo. Alguns países estão se homogeneizando, saindo de uma transição
democrática. Sou muito otimista.
Creio que isso possa levar a uma
independência maior dos EUA. O
Brasil é um caso particular, muito
pela questão linguística. Vejo-o
como a grande força da região.
Texto Anterior: "Cantamos a realidade do país", diz compositor Próximo Texto: Teatro Índice
|