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ARTIGO
Combate ao terror não pode constranger liberdades
ROBIN COOK
É a natureza súbita e arbitrária
da morte em um atentado terrorista que inspira apreensão universal. As vítimas inocentes de
Madri não haviam feito nada para
provocar seu assassinato. Nem
poderiam ter feito nada, conscientemente, para se salvar.
A escala do massacre é chocante. No entanto sua ressonância em
toda a Europa não deriva da aritmética das baixas, mas de nossa
identificação com as ações das vítimas no momento em que foram
abatidas. Como milhões de pessoas em todo o continente, naquela mesma hora, as vítimas estavam embarcando para a rotineira viagem aos seus locais de
trabalho, sem nenhum motivo
para suspeitar que aquela poderia
ser sua última jornada.
O terrorismo é assustador exatamente devido à imprevisibilidade, à seleção aleatória de suas vítimas entre os cidadãos comuns.
E, ao mesmo tempo, ele nos
causa indignação devido à insensatez, ao desperdício e à dor profunda que deixa em sua esteira.
Décadas depois que a maioria de
nós tiver esquecido as bombas
nos trens de Madri, algumas pessoas na Espanha ainda terão de
conviver com o trauma.
Novo padrão
Se a Al Qaeda não executou essa
operação, certamente definiu o
padrão ao qual as demais organizações terroristas agora aspiram.
O ETA vem concentrando suas
energias destrutivas, geralmente,
em alvos políticos específicos e,
nos últimos anos, reduziu a escala
e a intensidade de suas operações
terroristas. Se o ETA ou alguma
nova ala dissidente do grupo adotou a tática característica da Al
Qaeda, de ataques simultâneos e
espetaculares, estamos testemunhando uma alarmante escalada
do terrorismo internacional.
O atentado em Madri aconteceu
dias antes das eleições gerais na
Espanha, e seu objetivo é claramente prejudicar a votação. Mas
isso gera ainda mais perplexidade
na tentativa de compreender o
que os terroristas poderiam ganhar de fato com um assassinato
em massa dessa escala. O resultado mais provável é que será ainda
maior o comparecimento de eleitores indignados, determinados a
não permitir que os terroristas solapem a democracia.
A verdadeira ameaça do terrorismo à democracia não é que
possa nos impedir de participar
de eleições, mas que nos force a
restringir as liberdades e direitos
legais inseparáveis da democracia. A luta entre uma sociedade
aberta e seus inimigos é antiga o
bastante para que compreendamos, a essa altura, os riscos de
vencer a batalha usando métodos
que nos custem as liberdades que
estamos tentando proteger.
Os insidiosos murmúrios do
autoritarismo, ao longo da história, caracterizam a democracia
como um luxo do qual não podemos desfrutar diante da violência.
Na verdade, as sociedades democráticas se provaram mais fortes,
e não mais fracas, diante de ameaças, devido à determinação que
compartilham quanto a obter sucesso em nome da causa comum.
Nenhum cidadão sensato se colocaria, sob as presentes circunstâncias, contra um esforço intensivo de nossas agências de segurança para obter informações que
impeçam um ataque terrorista ou
contra ações vigorosas de nossa
polícia para deter aqueles que genuinamente planejam assassinatos em massa.
Mas precisamos nos precaver
contra responder ao terrorismo
de formas que fraturem a coesão
da sociedade e alienem quaisquer
de seus membros com relação à
causa comum.
No Reino Unido, existe uma
resposta autoritária à ameaça terrorista que acarreta o risco de
convencer uma larga seção de
nossa sociedade de que ela é mais
uma vítima da guerra contra o
terrorismo do que um parceiro
nessa empreitada.
Desde o 11 de Setembro, o número de buscas sob a Lei de Prevenção do Terrorismo se ampliou
em cinco vezes, para 30 mil ao
ano. A maioria esmagadora dessas buscas acontece em batidas às
casas de famílias muçulmanas. As
portas são derrubadas, e os moradores, tratados com brutalidade,
como suspeitos de terrorismo.
Se essa nova onda de batidas
domiciliares tivesse resultado em
uma carga considerável de provas
de terrorismo, talvez o cidadão
pudesse dar de ombros e aceitar o
inconveniente causado às famílias
inocentes como lastimável, mas
necessário. Mas a estatística chocante é que menos de 1% das batidas resultou em detenções. Para
expressar a situação de outra maneira, 99,5% das batidas contra famílias muçulmanas resultaram
em ligação nenhuma com terroristas. Se quiséssemos alienar cidadãos inocentes da guerra contra o terror, seria difícil encontrar
uma maneira mais efetiva do que
tratá-los como terroristas.
A repatriação ao Reino Unido
de detidos em Guantánamo, na
semana passada, ilustra os perigos de permitir que a vigilância,
uma força que pode servir para
unificar, se transforme em repressão, uma força sempre divisora.
Ninguém, quer nos EUA, quer no
Reino Unido, conseguiu encontrar justificativa convincente para
manter essas pessoas detidas, sob
circunstâncias degradantes, por
dois anos, para descobrir ao final
do período que não haverá acusações contra elas.
Isso revela um desprezo pelos
procedimentos judiciais que se
contrapõe de maneira clara à continuada pretensão de George W.
Bush à superioridade moral, em
sua "guerra contra o terrorismo".
Essa superioridade moral parece ainda mais questionável, dada
a reação ao seu uso de imagens do
11 de Setembro em comerciais de
TV, na sua campanha à reeleição.
A exposição dos supostos bombeiros que carregavam um caixão
no local do ataque como atores
profissionais aprofundou a indignação pública diante da tentativa
de manipular a tragédia humana
para obter vantagens eleitorais.
As mortes de Madri nos relembram da necessidade de união
diante dos terroristas. Não podemos arcar com a responsabilidade de alienar qualquer parcela da
sociedade com respeito a essa luta, ao violarmos seus direitos democráticos, nem dividir nossos
esforços, tentando tirar vantagem
política do terrorismo.
Robin Cook, 58, é parlamentar trabalhista desde 1974 e foi chanceler do Reino Unido de 1997 a 2001. Este artigo foi
publicado originalmente no jornal "The
Independent".
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