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ARTIGO
Com chumbo nas entranhas
Denis Doyle/Associated Press
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Mulher imprime as palmas de suas mãos em cartaz com a inscrição "covardes" colocado do lado de fora da estação de trens Santa Eugenia, em Madri, no dia seguinte aos atentados terroristas |
ANTONIO MUÑOZ MOLINA
Quando se concorda em viver
por tempo demais no delírio, o
despertar é um pesadelo. O som
das explosões e dos telefones tocando na manhã de março nos
despertou para o pesadelo inconcebível de um crime em uma escala para a qual não existe nem sequer termo de comparação nos
últimos 60 anos na Europa.
Mas não estou certo de que a
crueldade desse golpe tenha sido
suficiente para abrir tantos olhos
e tantas consciências empenhados em não enxergar a realidade e
em continuar a alimentar essa
confusão espectral de delírios coletivos em que se converteu a vida
pública espanhola. Que medo
provoca esse telefone que toca em
horas impróprias, que irrompe
no sonho e na escuridão ou que
salta como um disparo na claridade do amanhecer. Mas mais medo
do que o telefone dão certas palavras e certos silêncios, porque as
palavras matam com a mesma
eficácia que os disparos, e existem
silêncios tão impregnados de infâmia quanto as piores injúrias.
O que aconteceu em Madri não
teria sido possível sem muitos
anos de palavras envenenadas e
de silêncios criminosos, de delírios coletivos que se sobrepuseram à realidade e à razão com eficácia suficiente para converter em
párias aqueles que não os compartilham.
Quantos anos de doutrinação,
de veneno ideológico, de putrefação moral, são precisos para que
alguns tantos indivíduos nascidos
em um país democrático e com
alto nível de vida se vejam como
membros heróicos de uma pátria
oprimida e possam, com toda
frieza, planejar e executar o assassinato de centenas de pessoas a
quem nunca viram, mas que consideram de antemão culpadas.
Quantas vezes lhes ensinaram
nas escolas, nos jornais, na televisão a desprezar e odiar esse lugar
sinistro ao qual chamam "Madri",
pronunciando a palavra com a
adequada entonação de sarcasmo
e desdém, porque nessa Madri
habitam os que não são como
eles, os que lhes são inferiores, os
que estão do outro lado da linha
divisória feroz que separa o nós e
o nosso da névoa de tudo o que
nos é alheio e inimigo.
O delírio foi construído friamente, foi alimentado nos livros
didáticos, nos mapas, até mesmo
nos púlpitos das igrejas. Celebraram-se publicamente os assassinos, e difamaram-se as vítimas.
Dedicaram-se ruas aos verdugos;
eles foram canonizados, como encarnações de Cristo ou de Che
Guevara ou, ainda, dos dois ao
mesmo tempo. E, enquanto isso,
suas vítimas foram condenadas à
exclusão; negou-se a elas, com
afinco, até mesmo o consolo dos
funerais religiosos; elas foram forçadas a cruzar na rua com os mesmos que destroçaram suas vidas.
Os que denunciavam o escândalo da perseguição e da ameaça
diária no País Basco foram acusados de desmancha-prazeres e,
progressivamente, foram sendo
isolados na suspeita, quando não
na culpa direta: acusados de extremismo, de oportunismo, de
cumplicidade com a direita, até
mesmo de beneficiários do dinheiro sujo do poder.
As mães, que em qualquer sociedade buscam induzir a moderação em seus filhos, nessa terra
com freqüência atiçaram os seus.
Os adultos, em lugar de encorajar
a racionalidade nos jovens, os intoxicaram com ódio. E muitos
dos que não disseram nada, dos
que não fizeram nada, preferiram
se calar, por comodismo ou por
cinismo. Se não participaram do
delírio, se instalaram confortavelmente nele. Não correm perigo,
têm as mãos limpas e a consciência tranqüila. Ninguém vai acusá-los de fazer o jogo da direita.
Porque esse é outro dos delírios
que tornaram tão perturbada a vida espanhola: a perversão segundo a qual é progressista o nacionalismo étnico e tribal e reacionária a defesa da Constituição e das
liberdades civis, do mesmo modo
que parecem e se apresentam como sendo mais de esquerda aqueles que, impudicamente, aspiram
a romper a solidariedade comum,
para manter os benefícios integrais de seus privilégios.
Com argumentos de superioridade racial em alguns lugares, de
sofisticação cultural e política em
outros, foi se criando um inimigo
comum que é esse Estado central
que Madri representa e personifica. Madri é o espantalho ao qual
se pode atribuir a responsabilidade por qualquer opróbrio: pelo
cativeiro dos bascos ou os infortúnios dos catalãos,
pelo atraso da Andaluzia, pelo adiamento das Canárias, pela maré negra do Prestige ou a
pobreza da Galícia.
A palavra "Madri" eu já ouvi sendo pronunciada
com ódio em San
Sebastián e com
cultivado desdém
em Barcelona. Dir-se-ia que em Madri
só vivem opressores, exploradores,
gente grosseira e
racista cuja única
obsessão, nos últimos dois séculos,
tem sido conspirar
contra a liberdade
e o progresso das nobres populações periféricas.
É um delírio conveniente: permite a quem o nutre desfrutar das
vantagens de uma inocência perfeita e de um inimigo bastante vago, mas suficientemente preciso
para que se possa culpá-lo por todas nossas desgraças.
No fim, é em Madri que fica o
governo central, contra o qual
qualquer insulto é legítimo e que
se descreve já não mais como um
governo de direita, que ele é, mas
como um prolongamento da ditadura franquista.
Lendo os jornais, ouvindo o rádio, alguns artistas ou literatos
que se erigiram em arautos de
uma suposta rebeldia popular,
dir-se-ia que este governo chegou
ao poder por meio de um golpe de
Estado. Se disse e se escreveu que
o partido que hoje governa o país
é idêntico aos terroristas em seu
extremismo e seu imobilismo,
que é o partido daqueles que assassinaram García Lorca. Se disse,
se escreveu, se repetiu qualquer
coisa, misturando a verdade com
a mentira, os motivos justos de
discórdia e repúdio às acusações
mais insensatas.
E o resultado vem sendo a ruptura dos elementos mais primordiais da concórdia
civil, uma deslegitimação do Estado
que não enfraquece
esse governo, e sim
o próprio edifício da
democracia. E, nessa confusão, vemos
que um tolo irresponsável que difamou a representação popular que ostentava para negociar não se sabe o
que com os líderes
dos assassinos aparece como um defensor da tolerância
e do diálogo, vendo
aumentar os votos
de seu partido em
plebiscito, enquanto
os defensores da legalidade são retratados como perigosos extremistas.
E um homem direito e valoroso
como Fernando Savater é caluniado e impedido de falar em uma
universidade, enquanto cínicos
que viveram confortavelmente no
franquismo são envoltos num
prestígio ligado à rebeldia. E uma
mulher socialista que viu seu irmão ser assassinado no País Basco viaja a Madri para apresentar
um livro sobre a coragem e o sofrimento de sua família, sem que
um único representante público
de seu partido apareça.
E o mais renomado diretor de
cinema do país roda um filme sobre as mais de 30 variedades de
opróbrio que nos flagelam nestes
tempos, e nenhuma delas tem a
ver com o terrorismo. E se denuncia a falta de liberdade de expressão e a manipulação da televisão
pública sem nem sequer fazer
menção àqueles que perderam a
vida no norte nem aos que continuam a arriscá-la por dizer em
voz alta o que pensam nem considerar censurável a manipulação
dessas televisões oficiais, cuja tarefa principal é a de propagar as
formas mais extremas do delírio
nacionalista.
Vi de perto, em um setembro
quase três anos atrás, como outra
cidade era golpeada pelo terror.
Mas ali não houve ninguém que
não socorresse as vítimas, ninguém que tivesse a desumanidade
de justificar os assassinos ou de
instalar-se numa eqüidistância
que tornaria quase iguais os que
mataram e os que morreram, os
culpados e os inocentes.
Fui testemunha de atos de uma
coragem cívica que se repetiram
em Madri e me dei conta de que
não existe nada mais frágil do que
a vida humana, nada é mais fácil
de destruir do que os mecanismos
delicados que mantêm em funcionamento uma cidade, as pessoas de bem que vão ao trabalho
todas as manhãs e que não têm
culpa dos delírios homicidas, dos
fantasmas sanguinários que nascem do fanatismo religioso ou
ideológico.
Dois anos atrás, um dos mais
desalmados envenenadores da
convivência democrática na Espanha declarou, com sua habitual
careta de desprezo, falando do
"Guernica", de Picasso, que "aos
bascos deram as bombas, e os
quadros foram dados "ao pessoal
de Madri'". Agora Madri sofreu
uma calamidade tão criminosa
quanto as que os bombardeios da
aviação fascista provocavam durante a guerra -percebe-se que,
afinal, algumas bombas também
foram parar conosco e que, como
então, elas se alimentam dos bairros pobres, dos trabalhadores,
dos mais inocentes.
Em novembro de 1936, segundo
o poema de Antonio Machado,
Madri sorria "com chumbo nas
entranhas" e, em meio à dor, era a
fortaleza popular que resistia bravamente contra a agressão do fascismo. Há chumbo demais, estilhaços de bombas demais nas entranhas populares desta Madri
que madrugava para as obrigações e a dignidade do trabalho,
para o heroísmo menor de todos
os dias, quando os emissários do
crime atacaram a cidade com
uma fria decisão genocida.
Mas gostaríamos que esse pesadelo tão amargo e real servisse ao
menos para dissipar de algumas
consciências a névoa do delírio:
para que não se continuem a repetir tantas palavras que envenenam, tantos silêncios de cinismo,
tantas mentiras, tanta frivolidade
intelectual e política. Como aquele 11 de Setembro, talvez a facilidade espantosa da destruição nos
ajude a tomar consciência do valor do que temos, do quão preciosa e frágil é essa trama de atos, de
costumes, de tarefas, de subentendidos, de concessões mútuas,
que forma a própria matéria da
vida e da liberdade humana.
Não esqueceremos e não perdoaremos. Não deixaremos que
nenhum assassino se esconda na
impunidade, que o rosto ou a
identidade de nenhuma vítima se
apague no anonimato dos números. É uma promessa que faço a
mim mesmo: não permitirei que
ninguém, em minha presença, difame ou coloque em dúvida a dignidade daqueles que agora sofrem, não aceitarei mais palavras
enganosas ou cínicas que tornem
turva a linha clara que separa inocentes e verdugos, não me aproximarei de ninguém de quem suspeite que tenha se contaminado
com sua proximidade.
Antonio Muñoz Molina, 48, é um premiado escritor espanhol, autor de "Sefarad" (publicado no Brasil pela Companhia das Letras). Este artigo foi publicado no jornal "El País" antes de ganhar
força a hipótese de envolvimento de extremistas islâmicos nos atentados.
Tradução de Clara Allain
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