|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ABC DO ISLÃ
Entidade fundada por egípcio e libanês visa público amplo e quer evitar que muçulmanos deixem país para estudar
Brasil ganha sua 1ª "universidade" islâmica
LUCIANA COELHO
DA REDAÇÃO
Xeque Ahmed -o professor
que disserta sobre hadith, os ditos
do profeta Muhammad- parece
não ter problemas para manter o
interesse da classe. São 14 pares de
olhos e ouvidos atentos numa
noite de segunda-feira em São
Paulo, a maioria saída de um dia
intenso de trabalho para a casa espaçosa no Jardim Anália Franco.
Bem-vindos à aula inaugural da
primeira Universidade islâmica
do país.
O curso, primeiro e único por
enquanto, é de teologia islâmica, a
uma mensalidade de R$ 250. Mas
os planos dos fundadores, um
egípcio e um libanês, são grandiosos. "A comunidade islâmica no
Brasil tem cem anos e apenas três
escolas, nenhuma universidade.
Estamos atrasados", diz o diretor,
xeque Houssam el-Boustani, 36,
libanês radicado no Brasil há dez.
Ele explica animadamente que
os trâmites já estão correndo para
que a Unisb (sigla da "universidade") deixe de ser um curso livre e
se torne realmente uma faculdade
-e, depois, como promete seu
nome, uma universidade, com
oferta de outros cursos.
As tímidas instalações na rua
Emília Maringo, que abriram as
portas no último dia 2 para promover seu vestibular, também devem ser trocadas dentro de três
anos por uma sede maior na mesma região, em negociação.
Nem xeque Houssam nem o
presidente da instituição, o egípcio Said Basyumi Said, revelam o
investimento inicial. Mas dizem
que o custo mensal de manutenção da Unisb é de R$ 10 mil
-além da casa, do equipamento
e do material, há nove professores
na folha de pagamento, para 12
disciplinas. De onde vem o dinheiro? "A comunidade aqui no
Brasil ajudou", diz o xeque. O
censo do IBGE em 2000 registrou
27 mil muçulmanos no país, mas
a Assembléia Mundial da Juventude Islâmica no Brasil diz que
eles são cerca de 1,5 milhão.
E dinheiro de fora? "Não, por
enquanto não." Se os planos derem certo, no entanto, o investimento deve subir rapidamente.
Já no próximo ano, pretendem
receber 80 alunos, parte dos quais
poderá se instalar na Unisb como
em um internato ("para evitar a
dispersão do aluno"). E, embora
na aula inaugural, na última segunda-feira, os 11 homens e três
mulheres na classe fossem muçulmanos (a divulgação do curso se
limitou às mesquitas), a intenção
é diversificar o corpo discente.
Turma do fundão
Mesmo assim, as regras islâmicas devem ser obedecidas. Ao
contrário da maioria dos cursos,
onde o fundo da classe costuma
ser reservado para os alunos mais
ruidosos ou desatentos, na Unisb
as últimas carteiras cabem às mulheres. Enquanto não houver alunos suficientes para dividir as turmas em femininas e masculinas,
na frente sentam só eles.
Estranho? Xeque Houssam diz
que ajuda a manter a concentração. "É mais confortável para elas
mesmas, que não precisam ficar
preocupadas, por exemplo, na
hora que tiverem de abaixar para
pegar algo que caiu no chão."
A direção também avisa: dentro
da instituição o véu será obrigatório para professoras e alunas, sejam muçulmanas ou não. E a hora
do intervalo -ou ao menos parte
dela- é para rezar no oratório,
construído no andar inferior.
Mas como é o primeiro dia de
aula, e no primeiro dia sempre há
mais leniência, Ymad Eddin Kattouma, 16, usa os longos cabelos
loiros soltos e um jeans justo. Ela
ainda não sabe se vai se matricular. Caso vá, terá de usar as mesmas vestes recatadas de suas colegas. Algum problema? "Nenhum", diz ela, sorridente. É o suficiente para que seus irmãos,
Aleddin, 20, e Imad, 21, caiam no
riso. "Olha o cabelo dela. Você
acha que ela vai usar véu numa
boa?", pergunta Aleddin, que, como Imad, nasceu no Líbano e veio
para o Brasil na infância.
Paciência. Um professor já disse
que calça jeans justa não é roupa
adequada para uma muçulmana.
O irrequieto Aleddin (ou "bagunceiro", como disse seu irmão)
é um bom exemplo das histórias
que xeque Houssam contou para
explicar a razão para criar uma
universidade islâmica no país.
Com 16 anos, o pai o mandou
estudar em uma escola islâmica
no Líbano, em regime de internato, por dois anos. A adaptação foi
difícil, como, segundo xeque
Houssam, costuma ser para quase
todos os brasileiros. "Até nosso
fim de semana era em dias diferentes do que o das outras escolas", conta Aleddin, resignado.
Mulheres, ele não via nunca.
O diretor diz que, dos brasileiros que deixam o país para, gratuitamente, estudar islamismo
em locais como o Egito e a Arábia
Saudita, raros alcançam o intento
-desses, todos têm ascendência
árabe. "Muitos alunos saem motivados, mas não agüentam um ano
no internato. É muito rígido."
"Temos de nos modernizar"
O policial militar Mário Alves da
Silva Filho, 36, já estava planejando se mudar para o norte da África para estudar teologia islâmica,
mas a possibilidade de fazer o curso no Brasil o fez mudar de idéia.
"Espero muita coisa do curso. Minha idéia é estudar a religião, mas
não me profissionalizar. Sou PM
há 20 anos e não pretendo mudar
de profissão agora", diz.
Convertido há oito anos e, antes
disso, formado em teologia cristã
(estudar religião é para ele um
hobby), Mário era o aluno mais
participante na última segunda-feira. Além de fazer perguntas,
ainda auxiliava o professor na hora de traduzir do árabe para o
português citações do Alcorão.
A maioria de seus colegas, como
o radialista Ahmad Adile, apresentador do programa "A Voz
dos Árabes no Brasil" (Rádio Imprensa), parece ter pretensão semelhante: conhecer mais profundamente a religião e obter uma
formação humanista. Mas quem
quiser sai dali formado xeque
(professor de islamismo).
O currículo, dividido entre xeques e professores laicos (todos
brasileiros), engloba português,
inglês, árabe, história, filosofia e
psicologia, além das aulas sobre
hadith, Alcorão, jurisprudência e
crença islâmica. Tudo, prometem
os professores, seguindo uma linha ampla, sem escolas específicas e sem radicalismos. "Temos
de nos modernizar. Afinal, estamos no século 21", diz o diretor.
Há também aula de estudo bíblico, ministrado por um padre.
Outras religiões? "O islã só reconhece outras duas religiões, o cristianismo e o judaísmo", diz xeque
Houssam. E o judaísmo, será
abordado? "Decidimos que não,
até que esteja resolvido o conflito
entre a Palestina e Israel."
Texto Anterior: Massacre: Rebeldes hutus matam ao menos 159 tutsis em campo para refugiados no Burundi Próximo Texto: Iraque: Negociações de paz fracassam em Najaf Índice
|