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CINEMA E FÉ
Ativistas islâmicos criticam produção sobre o tema no momento em que há confrontos entre muçulmanos e ocidentais
Filme sobre Cruzadas irrita muçulmanos
SHARON WAXMAN
DO ""NEW YORK TIMES", EM LOS ANGELES
Com a televisão mostrando diariamente imagens sangrentas de
muçulmanos e ocidentais travando combates no Iraque e em outras partes do mundo, pode parecer um momento impróprio para
lançar um épico hollywoodiano,
feito com grande orçamento, que
retrata as Cruzadas do século 12, a
guerra feroz travada entre cristãos
e muçulmanos pelo domínio de
Jerusalém.
Mas a 20th Century Fox prepara-se para lançar em 2005 o filme
""Kingdom of Heaven" (reino dos
céus), uma produção de US$ 130
milhões do diretor indicado ao
Oscar Ridley Scott, rodada em
Marrocos com centenas de figurantes, cavalos e figurinos primorosos.
O roteiro, assinado por William
Monahan, é baseado em personagens reais das Cruzadas, entre eles
Balian de Ibelin, um cavaleiro
cruzado que liderou a defesa de
Jerusalém no ano de 1187, e o líder
muçulmano Saladino, que o derrotou.
Enquanto o estúdio procura enfatizar o que o filme possui de romântico e de ação emocionante,
alguns estudiosos e ativistas religiosos aos quais o ""New York Times" forneceu uma cópia do roteiro questionaram o bom senso
de se fazer um filme de Hollywood sobre um conflito religioso
medieval num momento em que
muitas pessoas acreditam que esses conflitos tenham sido retomados num contexto moderno.
""Minha maior preocupação diz
respeito ao próprio conceito de
um filme sobre as Cruzadas e o
que isso significa no discurso
americano atual", disse Laila al
Qatami, porta-voz do Comitê Antidiscriminação Árabe-Americano, em Washington. ""Sinto que
há muita retórica, que há figuras
de destaque que falam sobre o islã
ser incompatível com a cristandade e os valores americanos. Esse
tipo de filme pode reforçar essa
temática", afirmou.
Mas nem todos se mostraram
preocupados com o efeito do filme. George Dennis, que é padre
jesuíta, professor de história na
Universidade Loyola Marymount, em Los Angeles, e um dos
cinco especialistas que receberam
o roteiro, contou ter ficado impressionado com a precisão do filme e sua atenção a detalhes.
""Historicamente falando, achei
o roteiro bastante preciso", disse.
""Não posso ver qualquer objeção
possível por parte do lado cristão.
E acho que os muçulmanos tampouco devem fazer objeções.
Acho que não há nada no filme
que seja ofensivo para alguém."
Mas o professor Khaled Abu el
Fadl, da Universidade da Califórnia em Los Angeles e estudioso do
direito islâmico, discorda totalmente, dizendo que o roteiro é
ofensivo e repete os estereótipos
hollywoodianos tradicionais de
árabes e muçulmanos.
""Acho que esse filme ensina as
pessoas a odiar os muçulmanos",
disse. ""Existe um estereótipo do
muçulmano como sendo alguém
constantemente estúpido, atrasado, retardado, incapaz de pensar
em termos complexos. É realmente irritante em nível intelectual e, além disso, é uma visão que
pinta um retrato equivocado da
história, em vários níveis."
Fadl argumentou que o filme
vai reforçar as atitudes negativas
em relação aos muçulmanos na
América. ""Neste clima, como as
pessoas vão reagir àquelas imagens de muçulmanos atacando
igrejas, arrancando a cruz e zombando dela?", perguntou.
Mesmo deixando-se de lado os
aspectos específicos do filme, o tema é delicado. A própria palavra
""cruzada" ainda é carregada.
Quando, pouco após os ataques
do 11 de Setembro, o presidente
George W. Bush descreveu a
guerra contra o terror como ""cruzada", foi criticado por usar um
termo que há anos tem conotação
antimuçulmana.
Enquanto isso, alguns especialistas em temas islâmicos que analisaram as motivações de Osama
bin Laden após o 11 de Setembro
sugeriram que ele estivesse tentando se fazer ver como um Saladino moderno. E o nome de Saladino foi evocado pelo governo de
Saddam Hussein para arregimentar os muçulmanos contra a invasão do Iraque liderada pelos EUA.
"Ética dos escoteiros"
Ridley Scott disse que não está
preocupado com a possibilidade
de ofender as sensibilidades de
grupos religiosos. Em entrevista
concedida na semana passada,
explicou por que: ""O filme soa como a ética dos escoteiros. Fala em
usar o coração e a cabeça e agir de
maneira ética. Como se pode discordar disso? O filme não pisoteia
o Alcorão, nada disso".
Para um filme que trata de uma
guerra santa, ""Kingdom of Heaven" surpreende por ter pouco
discurso e conteúdo religiosos.
As únicas figuras abertamente
religiosas são extremistas: os saqueadores cavaleiros templários,
do lado cristão, e os mortíferos cavaleiros sarracenos, do lado muçulmano.
O herói do filme, Balian, representado pelo ator britânico Orlando Bloom, é um ferreiro francês
que é convocado a contragosto
para as Cruzadas após o suicídio
de sua mulher. Chegando a Jerusalém, retratada como uma cidade onde as três religiões monoteístas do mundo conviviam, ele
se apaixona pela irmã do rei.
Após um massacre de muçulmanos pelos cavaleiros templários, Saladino, representado por
Ghassan Massoud, parte para a
guerra. O líder muçulmano é
mostrado como alguém equilibrado e cavalheiresco, pelo menos até o momento em que ordena que não seja dado nenhum
quartel no ataque a Jerusalém.
Jim Gianopulos, co-presidente
do estúdio Fox, disse não imaginar que o filme dê razão para polêmica. ""Estamos emocionados
por termos Ridley fazendo este filme",afirmou. ""Afinal, ele é o mestre do épico moderno, e esta é
uma história rica em escala, aventura, romance e ação. Pelo que já
pudemos ver, será um dos acontecimentos cinematográficos
mais importantes de 2005."
Executivos da Warner Brothers
leram o roteiro e se negaram a dividir com a Fox o financiamento
do filme, mas Alan Horn, presidente da Warner, disse que a recusa não tem relação alguma com
o tema, mas se deve ao fato de o
estúdio estar trabalhando com
outros épicos históricos. ""Achei o
filme bem equilibrado, mostrando perspectivas políticas diferentes. Não é algo em preto e branco,
mostrando os bons e os maus."
Apesar disso, as cenas de batalha que constam do roteiro são
enormes e violentas. Ridley Scott
é um dos diretores mais aclamados de Hollywood e já criou cenas
de guerra inesquecíveis em filmes
como ""Gladiador" e ""Falcão Negro em Perigo".
Em suas muitas cenas de devastação, o roteiro mostra momentos de intransigência de ambos os
lados. ""Entregareis a cidade?"
pergunta o vitorioso Saladino a
Balian. Este responde: ""Antes de
perdê-la, eu a queimarei até o
chão. Destruirei seus lugares santos. Os nossos. Tudo o que existe
em Jerusalém que leva os homens
à loucura".
Perto do final do filme o roteiro
descreve o exército muçulmano
avançando sobre Jerusalém. Enquanto os soldados gritam ""Alá!",
Saladino fala: ""Nem um homem
vivo. Nem um só".
Precisão histórica
Os dois acadêmicos que leram o
roteiro discordaram quanto a sua
precisão histórica. Dennis disse
que o Estado cruzado do século 12
era relativamente tolerante, como
o que é mostrado no filme, e que
Saladino de fato ordenou a suas
tropas que não dessem quartel
nos combates em Jerusalém, ordem que, mais tarde, revogou.
Mas Fadl afirmou que o Estado
cruzado foi, por sua própria natureza, discriminatório e repressivo
em relação a outras religiões. Ele
disse que os cavaleiros muçulmanos levavam muito a sério a idéia
de dar quartel e que a idéia de que
Saladino pudesse agradecer a Balian por lhe ensinar o código da
cavalaria, como consta no roteiro,
é risível.
""Basta ver qualquer livro sobre
a cavalaria -o que aconteceu foi
o contrário", disse. ""Toda a idéia
da cavalaria e dos cavaleiros veio
dos muçulmanos e foi exportada
para a Europa."
Fadl, assim como Dennis, observou que, na época da Cruzada
mostrada no filme, a ciência e os
estudos acadêmicos eram muito
mais adiantados no mundo islâmico do que na Europa.
É claro que, para Hollywood, a
polêmica é algo que não é necessariamente ruim. O filme ""A Paixão de Cristo", de Mel Gibson,
provocou uma controvérsia acirrada quando organizações judaicas, irritadas com o retrato violento que o diretor pintou da crucificação de Jesus Cristo, acusaram o
filme de anti-semitismo. Apesar
disso, "A Paixão" arrecadou US$
609 milhões de dólares de bilheteria mundial.
Resta ver se o público vai concordar. Christy Lohr, que leu o roteiro e é coordenadora do Consórcio Multifé de Educação Religiosa, de Nova York, uma associação que abrange 12 escolas de teologia, opinou: ""Acho que esse filme vai provocar uma tempestade
de críticas e divulgação gratuita
nas páginas de opinião e editoriais. Imagino que, para Hollywood, essa seja parte da atração
do filme. É cínico, mas acho que
eles gostam de mexer em casa de
marimbondo".
Tradução de Clara Allain
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