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AMÉRICA LATINA
Presidente do Chile acredita em aplicação de políticas sociais como meio de melhorar desempenho externo
Lagos defende "coesão social" para crescer
PLÍNIO FRAGA
ENVIADO ESPECIAL A ASSUNÇÃO
O presidente do Chile, Ricardo
Lagos Escobar, 65, chega na terça-feira ao Brasil para expor ao colega Luiz Inácio Lula da Silva uma
tese que lhe é cara. "Um país sem
coesão social é conflitivo. Um país
conflitivo não é competitivo. Para
competir no exterior, é preciso
coesão social."
De formação ideológica esquerdista e forjados como políticos no
combate ao regime militar de seus
países, Lagos e Lula ainda se dizem socialistas. Mas o chileno
afirma que a esquerda de hoje é
diferente da de 30 anos atrás.
"O desafio é criar políticas públicas que garantam acesso a bens
e serviços essenciais ao desenvolvimento humano. Independentemente do mercado", afirma.
Lagos e Lula tentarão reduzir
suas arestas nas negociações comerciais com os EUA. O brasileiro defende uma negociação regional para que os países sul-americanos tenham mais força contra
os americanos. Lagos optou por
assinar um acordo em separado
com os EUA, mas afirma ainda
ver a possibilidade de participar
de negociações via Mercosul.
Menos de um mês antes de o
golpe militar contra Salvador
Allende completar 30 anos, Lagos
ainda enfrenta polêmica na relação com militares e familiares de
desaparecidos políticos chilenos.
Editou, na semana passada, um
pacote que desagradou aos dois
lados, em especial aos que defendiam a revogação da anistia política. "Não tenho força política para revogar a lei da anistia. Se tivesse votos e revogasse a lei da anistia, quais seriam os efeitos jurídicos? Nenhum", declara.
Na sexta-feira, após 11 horas de
comemoração da posse do novo
presidente paraguaio, Nicanor
Duarte, e de uma reunião com os
presidentes dos países do Mercosul, Lagos falou à Folha, em um
clube à margem do rio Paraguai.
Folha - O Chile assinou um acordo
de livre comércio com os EUA. O
Brasil defende que esse tipo de
acordo seja feito por meio dos blocos regionais. Há um choque de estratégia entre Brasil e Chile?
Ricardo Lagos - O choque tem de
acontecer com as atuais taxas alfandegárias. A média do Mercosul é de 14%. A [taxa] do Chile
mais alta é de 6%. Como seriam as
negociações com os EUA? Quando alguém diz que temos de baixar as tarifas de 14% a 0% em cinco anos é uma coisa. Outra é dizer
para baixar de 6% a 0% em cinco
anos. O Mercosul aceitar uma coisa dessas é muito difícil.
Quando há tarifas de importação tão diferentes, uma negociação comum é muito difícil. Mas
há um conjunto de temas numa
negociação como essa, quando
como dizemos que não gostamos
da legislação antidumping dos
EUA. Um país pequeno como o
Chile não tem força para mudar a
lei. Então poderíamos conversar
num fórum mais amplo. Hoje
aprovamos -Mercosul, Bolívia e
Chile- uma declaração conjunta
sobre subsídios agrícolas. Nossa
situação é um pouco diferente da
de outros países, onde a agricultura é muito importante.
Folha - O Chile liderou o processo
de liberalização dos mercados na
América do Sul, sob o regime militar. O sr. acha que a velocidade foi
adequada ou houve precipitação?
Lagos - Houve uma decisão
muito drástica no governo militar. Mas, quando voltamos à democracia, preocupamo-nos com
a construção de uma rede de proteção social. Por exemplo, há três
anos criamos o seguro-desemprego, modificamos as leis trabalhistas e agora estamos enviando um
projeto para agilizar os tribunais
do trabalho. Na democracia, continuamos marchando para sermos competitivos.
No dia em que assinamos o
acordo de livre comércio com os
EUA, disse: agora quero que usemos a mesma força para maior
integração social. Preciso aumentar impostos para os programas
sociais. Assim fiz. Porque não se
pode fazer um acordo com os
EUA e ter um país sem solidariedade, sem coesão social.
Folha - O sr. descontentou familiares de desaparecidos políticos
ao propor redução de pena para ex-torturadores e ex-repressores que
ajudassem nas investigações. Como
recebeu essas críticas?
Lagos - No Chile, na gestão Patricio Alwyn, o Exército reconheceu que havia desaparecidos políticos. Com Eduardo Frei, os militares admitiram que houve violações dos direitos humanos. Antes
já se havia indenizado os familiares dos executados e desaparecidos políticos, indenizado aos exonerados da administração pública
e dado algum tipo de apoio aos
exilados. Minha proposta aponta
para um indenização austera,
modesta aos presos políticos.
Criamos procedimentos para acelerar os processos judiciais.
Tudo isso é aplaudido pelos
grupos que defendem os direitos
humanos. Eles não gostaram de
eu não ter aceitado enviar um
projeto revogando a lei da anistia
criada pelo governo Pinochet. Por
quê? Não tenho força política para
revogar a lei da anistia.
Folha - Há queixas ainda contra a
redução da pena para quem auxiliar as investigações judiciais.
Lagos - Aqueles que colaborarem com a Justiça e que não tenham participado do núcleo que
ordenou a tortura... Um soldado
que recebe uma ordem a cumpre.
Há uma clara distinção entre os
que foram responsáveis pela criação do sistema e os que cumpriram ordem. Está estabelecida a
redução de penas. Para delitos
menos graves, pode se chegar a
nenhuma pena.
Mas também há militares assassinos que reclamaram porque um
desaparecido era dado como sequestrado. E um delito de sequestro não termina enquanto não
houver um corpo. Eles queriam
que eu propusesse que não pode
existir um sequestro permanente
por mais de 30 anos. De certo modo, minha proposta recebeu a desaprovação de um setor militar de
um lado e dos familiares de outro.
Mas é justa.
Folha - Brasil, Chile e Argentina
tiveram regimes militares por períodos semelhantes, mas trataram
de maneira bastante diferente a
transição para a democracia. Como
o sr. avalia atos como o do presidente argentino, Néstor Kirchner,
de rever a anistia, rompendo com a
idéia da transição negociada?
Lagos - Depende de como funciona o sistema judicial em cada
país. No Chile, quase todos os casos de desaparecidos chegaram à
Justiça ainda no regime de Pinochet. Em outros países, os processos só foram abertos depois do
fim do regime militar.
Folha - No próximo dia 11, completam-se 30 anos da derrubada de
Salvador Allende, que pretendia
nomeá-lo embaixador em Moscou,
o que o Congresso não aprovou.
Que erros o sr. acha que foram cometidos por Allende e em que o sr.
mudou desde então?
Lagos - O socialismo, 30 anos
atrás, pensava muito mais em
grandes empresas do Estado para
tornar o mundo mais justo.
Hoje em dia, o conhecimento e
a educação é que fazem diferença.
Atualmente, a educação é que garante a igualdade de oportunidades. Uma política pública significa dar mais recursos onde há mais
pobreza para garantir a igualdade
de oportunidade. A grande diferença hoje é que os cidadãos, não
os consumidores, tenham serviços sociais ao alcance de todos.
A sociedade é uma sociedade de
mercado. Mas não quero uma sociedade de mercado. Quero uma
sociedade em que os cidadãos decidam as políticas públicas para
assegurar a cada chileno o acesso
à saúde, por exemplo. O desafio
da esquerda é criar políticas públicas que garantam acesso a bens
e serviços essenciais ao desenvolvimento humano. Independentemente do mercado.
Folha - Allende errou em sua estratégia reformista e precipitou o
golpe?
Lagos - Errou ao tentar fazer
grandes mudanças sem um respaldo majoritário da sociedade.
Fizemos na esquerda muita autocrítica sobre o que houve.
Folha - Muitos analistas enxergam um eixo de esquerda nos
atuais governos de Brasil, Chile,
Venezuela, Argentina, Equador e
Cuba. Existe um denominador entre esses governantes?
Lagos - Aprendemos que temos
de ter seriedade nas políticas econômicas, eficiência nas políticas
públicas e que a responsabilidade
principal pelo desenvolvimento
tem de estar dentro do país. Os
exemplos que você dá são de realidades diferentes. O esforço do
presidente Lula para equilibrar a
política fiscal e enfrentar o tema
da Previdência requer muita coragem. Tem de fazê-lo. Mesma
coragem que se requer para enfrentar a iniquidade.
Folha - A maior crítica a Lula é seguir uma política ortodoxa que sacrifica investimentos em razão da
necessidade de superávit fiscal.
Lagos - A diferença estará em
quanto do superávit poderá ser
destinado às políticas sociais. Essa
é a diferença. Precisa ter as finanças equilibradas? Claro. Em sua
casa deve ser assim também.
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