UOL


São Paulo, domingo, 17 de agosto de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

AMÉRICA LATINA

Presidente do Chile acredita em aplicação de políticas sociais como meio de melhorar desempenho externo

Lagos defende "coesão social" para crescer

PLÍNIO FRAGA
ENVIADO ESPECIAL A ASSUNÇÃO

O presidente do Chile, Ricardo Lagos Escobar, 65, chega na terça-feira ao Brasil para expor ao colega Luiz Inácio Lula da Silva uma tese que lhe é cara. "Um país sem coesão social é conflitivo. Um país conflitivo não é competitivo. Para competir no exterior, é preciso coesão social."
De formação ideológica esquerdista e forjados como políticos no combate ao regime militar de seus países, Lagos e Lula ainda se dizem socialistas. Mas o chileno afirma que a esquerda de hoje é diferente da de 30 anos atrás.
"O desafio é criar políticas públicas que garantam acesso a bens e serviços essenciais ao desenvolvimento humano. Independentemente do mercado", afirma.
Lagos e Lula tentarão reduzir suas arestas nas negociações comerciais com os EUA. O brasileiro defende uma negociação regional para que os países sul-americanos tenham mais força contra os americanos. Lagos optou por assinar um acordo em separado com os EUA, mas afirma ainda ver a possibilidade de participar de negociações via Mercosul.
Menos de um mês antes de o golpe militar contra Salvador Allende completar 30 anos, Lagos ainda enfrenta polêmica na relação com militares e familiares de desaparecidos políticos chilenos.
Editou, na semana passada, um pacote que desagradou aos dois lados, em especial aos que defendiam a revogação da anistia política. "Não tenho força política para revogar a lei da anistia. Se tivesse votos e revogasse a lei da anistia, quais seriam os efeitos jurídicos? Nenhum", declara.
Na sexta-feira, após 11 horas de comemoração da posse do novo presidente paraguaio, Nicanor Duarte, e de uma reunião com os presidentes dos países do Mercosul, Lagos falou à Folha, em um clube à margem do rio Paraguai.

Folha - O Chile assinou um acordo de livre comércio com os EUA. O Brasil defende que esse tipo de acordo seja feito por meio dos blocos regionais. Há um choque de estratégia entre Brasil e Chile?
Ricardo Lagos
- O choque tem de acontecer com as atuais taxas alfandegárias. A média do Mercosul é de 14%. A [taxa] do Chile mais alta é de 6%. Como seriam as negociações com os EUA? Quando alguém diz que temos de baixar as tarifas de 14% a 0% em cinco anos é uma coisa. Outra é dizer para baixar de 6% a 0% em cinco anos. O Mercosul aceitar uma coisa dessas é muito difícil.
Quando há tarifas de importação tão diferentes, uma negociação comum é muito difícil. Mas há um conjunto de temas numa negociação como essa, quando como dizemos que não gostamos da legislação antidumping dos EUA. Um país pequeno como o Chile não tem força para mudar a lei. Então poderíamos conversar num fórum mais amplo. Hoje aprovamos -Mercosul, Bolívia e Chile- uma declaração conjunta sobre subsídios agrícolas. Nossa situação é um pouco diferente da de outros países, onde a agricultura é muito importante.

Folha - O Chile liderou o processo de liberalização dos mercados na América do Sul, sob o regime militar. O sr. acha que a velocidade foi adequada ou houve precipitação?
Lagos
- Houve uma decisão muito drástica no governo militar. Mas, quando voltamos à democracia, preocupamo-nos com a construção de uma rede de proteção social. Por exemplo, há três anos criamos o seguro-desemprego, modificamos as leis trabalhistas e agora estamos enviando um projeto para agilizar os tribunais do trabalho. Na democracia, continuamos marchando para sermos competitivos.
No dia em que assinamos o acordo de livre comércio com os EUA, disse: agora quero que usemos a mesma força para maior integração social. Preciso aumentar impostos para os programas sociais. Assim fiz. Porque não se pode fazer um acordo com os EUA e ter um país sem solidariedade, sem coesão social.

Folha - O sr. descontentou familiares de desaparecidos políticos ao propor redução de pena para ex-torturadores e ex-repressores que ajudassem nas investigações. Como recebeu essas críticas?
Lagos
- No Chile, na gestão Patricio Alwyn, o Exército reconheceu que havia desaparecidos políticos. Com Eduardo Frei, os militares admitiram que houve violações dos direitos humanos. Antes já se havia indenizado os familiares dos executados e desaparecidos políticos, indenizado aos exonerados da administração pública e dado algum tipo de apoio aos exilados. Minha proposta aponta para um indenização austera, modesta aos presos políticos. Criamos procedimentos para acelerar os processos judiciais.
Tudo isso é aplaudido pelos grupos que defendem os direitos humanos. Eles não gostaram de eu não ter aceitado enviar um projeto revogando a lei da anistia criada pelo governo Pinochet. Por quê? Não tenho força política para revogar a lei da anistia.

Folha - Há queixas ainda contra a redução da pena para quem auxiliar as investigações judiciais.
Lagos
- Aqueles que colaborarem com a Justiça e que não tenham participado do núcleo que ordenou a tortura... Um soldado que recebe uma ordem a cumpre. Há uma clara distinção entre os que foram responsáveis pela criação do sistema e os que cumpriram ordem. Está estabelecida a redução de penas. Para delitos menos graves, pode se chegar a nenhuma pena.
Mas também há militares assassinos que reclamaram porque um desaparecido era dado como sequestrado. E um delito de sequestro não termina enquanto não houver um corpo. Eles queriam que eu propusesse que não pode existir um sequestro permanente por mais de 30 anos. De certo modo, minha proposta recebeu a desaprovação de um setor militar de um lado e dos familiares de outro. Mas é justa.

Folha - Brasil, Chile e Argentina tiveram regimes militares por períodos semelhantes, mas trataram de maneira bastante diferente a transição para a democracia. Como o sr. avalia atos como o do presidente argentino, Néstor Kirchner, de rever a anistia, rompendo com a idéia da transição negociada?
Lagos
- Depende de como funciona o sistema judicial em cada país. No Chile, quase todos os casos de desaparecidos chegaram à Justiça ainda no regime de Pinochet. Em outros países, os processos só foram abertos depois do fim do regime militar.

Folha - No próximo dia 11, completam-se 30 anos da derrubada de Salvador Allende, que pretendia nomeá-lo embaixador em Moscou, o que o Congresso não aprovou. Que erros o sr. acha que foram cometidos por Allende e em que o sr. mudou desde então?
Lagos
- O socialismo, 30 anos atrás, pensava muito mais em grandes empresas do Estado para tornar o mundo mais justo.
Hoje em dia, o conhecimento e a educação é que fazem diferença. Atualmente, a educação é que garante a igualdade de oportunidades. Uma política pública significa dar mais recursos onde há mais pobreza para garantir a igualdade de oportunidade. A grande diferença hoje é que os cidadãos, não os consumidores, tenham serviços sociais ao alcance de todos.
A sociedade é uma sociedade de mercado. Mas não quero uma sociedade de mercado. Quero uma sociedade em que os cidadãos decidam as políticas públicas para assegurar a cada chileno o acesso à saúde, por exemplo. O desafio da esquerda é criar políticas públicas que garantam acesso a bens e serviços essenciais ao desenvolvimento humano. Independentemente do mercado.

Folha - Allende errou em sua estratégia reformista e precipitou o golpe?
Lagos
- Errou ao tentar fazer grandes mudanças sem um respaldo majoritário da sociedade. Fizemos na esquerda muita autocrítica sobre o que houve.

Folha - Muitos analistas enxergam um eixo de esquerda nos atuais governos de Brasil, Chile, Venezuela, Argentina, Equador e Cuba. Existe um denominador entre esses governantes?
Lagos
- Aprendemos que temos de ter seriedade nas políticas econômicas, eficiência nas políticas públicas e que a responsabilidade principal pelo desenvolvimento tem de estar dentro do país. Os exemplos que você dá são de realidades diferentes. O esforço do presidente Lula para equilibrar a política fiscal e enfrentar o tema da Previdência requer muita coragem. Tem de fazê-lo. Mesma coragem que se requer para enfrentar a iniquidade.

Folha - A maior crítica a Lula é seguir uma política ortodoxa que sacrifica investimentos em razão da necessidade de superávit fiscal.
Lagos
- A diferença estará em quanto do superávit poderá ser destinado às políticas sociais. Essa é a diferença. Precisa ter as finanças equilibradas? Claro. Em sua casa deve ser assim também.


Texto Anterior: Oriente Médio: Palestinos ignoram obrigação, diz Sharon
Próximo Texto: Frases
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.