|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
"Feridas devem continuar abertas", diz escritor chileno
ROGERIO WASSERMANN
DA REDAÇÃO
A proposta do presidente chileno, Ricardo Lagos, para revisar as
questões pendentes sobre os crimes cometidos pela ditadura de
Augusto Pinochet (1973-89) é positiva, mas não se deve, com isso,
querer fechar as feridas abertas
pelos abusos do período.
A avaliação é do escritor chileno
Antonio Skármeta ("O Carteiro e
o Poeta"), um dos milhares de vítimas da ditadura. Ele foi obrigado a se exilar, no período, na Alemanha, para onde voltou em
2000, desta vez como embaixador
chileno no país -função que
exerceu até este ano. "Não podemos ter a frivolidade de fechar
uma ferida que não está fechada
na alma", diz. "Tomara que, ainda
que passem gerações, a atrocidade fique viva, para que ela siga, luminosamente, sendo algo que
machuque os olhos, que irrite."
Skármeta, 62, esteve anteontem
em São Paulo para uma palestra
no instituto Itaú Cultural, no qual
lançou também os livros "A Garota do Trombone" e "A Redação"
-este último, voltado ao público
infanto-juvenil, mostra o período
da ditadura sob o olhar de um
menino. "A Redação" ganhou o
prêmio Unesco 2003 de Literatura
Infantil e Juvenil em Prol da Tolerância. Após uma seção de autógrafos, Skármeta falou à Folha.
Folha - Como o sr. vê a proposta
do presidente Ricardo Lagos para
investigar os crimes da ditadura?
Antonio Skármeta - É muito importante qualquer iniciativa para
consolidar a paz e fazer justiça aos
familiares de detidos e desaparecidos. Mas temos de fazer um esforço para conseguir aproximar
os protagonistas da tragédia chilena. O tempo e a prática da democracia vão suavizando as divisões. Um exemplo muito claro:
Pinochet, no Chile, já há anos está
isolado.
Folha - Pinochet não é mais um
tema da política chilena?
Skármeta - É um tema mundial,
porque é uma questão moral e de
ética judicial que segue muito forte. Mas, na política interna chilena, Pinochet está isolado. Porque
a direita chilena se modernizou. É
agora uma direita moderna, que
entende que suas melhores oportunidades estão dentro do jogo
democrático. Afastando-se de Pinochet, conseguiu uma importante votação e mantém aspirações inclusive de ganhar a Presidência nas próximas eleições.
Folha - A reabertura das investigações não pode fazer voltar essas
divisões, com reação daqueles que
forem afetados por elas?
Skármeta - Pode ser. Mas temos
de tentar. É um tema muito sensível, muito complicado. E, em
muitos anos, se fez muito pouco.
As investigações nas quais se descobriram os culpados não resultaram em condenações. São muito
poucos os que foram presos. Inclusive as penas são suaves pelos
crimes que cometeram. Por isso, a
iniciativa de Lagos é importante,
assim como a iniciativa da direita,
que apresentou um plano de indenizações para as vítimas.
De qualquer forma, acho que as
pessoas devem se aproximar, mas
não temos de fechar nenhuma ferida. Uma ferida aberta é uma
permanente fonte de meditação e
de dor. Não podemos ter a frivolidade de fechar uma ferida que
não está fechada na alma.
Não convém fechar artificialmente. Deve-se tentar fazer, mas
sem pôr limites e datas nem firmar um compromisso. Por exemplo, uma anistia total para os criminosos viola a carta fundamental de direitos humanos.
Por isso, valorizo todas as iniciativas, mas temos de aceitar
também que haja resistência, que
as pessoas queiram mais. Que
queiram mais justiça, mais verdade, mais indenizações.
Folha - Serão necessárias gerações para que isso seja superado?
Skármeta - Tomara que, ainda
que passem gerações, a atrocidade fique viva, para que ela siga, luminosamente, sendo algo que
machuque os olhos, que irrite.
Não temos por que nos condenarmos a uma vida cômoda e frívola.
Nesse sentido, a arte chilena, como o cinema ou a literatura, trabalha também com essa verdade.
Não tanto programaticamente.
Mas lhe dou um exemplo: eu conheço uma garota em uma festa,
que me seduz, é inteligente, belíssima. Eu, como homem apaixonado, quero me relacionar com
ela. Convido-a para, no próximo
sábado, irmos a um café. Quero
levá-la ao cinema, conversar e, se
for possível, ir a um motel.
Mas, no sábado, vou ao café, e a
garota não chega. Ligo para sua
casa, e a mãe diz que não sabe onde ela está. Na segunda-feira sabemos que foi presa. Uma semana
depois, seu cadáver é encontrado
jogado em uma fossa.
Eu queria viver uma vida normal, estava apaixonado. Queria
ver um filme, sair para dançar,
queria amar. Eu queria essa garota. Mas acontece que a ditadura se
meteu no meio. É por isso que a
ditadura aparece em minha obra,
como na de tantos outros escritores. É parte do drama.
Todas as vidas são dramas. E todas as vidas em algum momento
encontram dificuldades. A América Latina encontrou uma dificuldade imensa, coletiva. E essa
dificuldade coletiva se meteu na
alma, na mais profunda intimidade das pessoas.
Não acho que nenhum colega
diga que faça literatura política. A
política é que agregou um elemento trágico à nossa literatura.
E, inclusive, deve-se agradecer
que a maioria dos escritores ainda
consiga tratar desses temas com
ironia, com humor. A fantasia, a
magia, são uma força libertária. E
quem sofreu, quando lê, sente um
tipo de emoção estética especial.
Folha - O fato de o sr. escrever sobre o período da ditadura é um reflexo dessa intenção, de manter a
memória viva e não fechar a ferida?
Skármeta - Lamento dizer, mas
não escrevo para algo, crio personagens individuais, com suas pequenas histórias privadas, que se
vêem envolvidos na grande história pública. Não uso meus personagens para provar nem para denunciar nada.
Folha - Não é contraditório tratar
de um tema pesado como a ditadura em um livro infanto-juvenil?
Skármeta - Eu tenho uma grande confiança no instinto pela liberdade. Em minha obra, acho
que a liberdade não é algo com
que se nasce. É algo que se deve
conquistar dia a dia. Acho também que a literatura é um grande
exercício de liberdade, frente às
imagens domesticadas, reiteradas
e comerciais que nos oferecem. A
literatura é uma contínua insurreição em favor da liberdade.
Texto Anterior: Frases Próximo Texto: Uganda: Morre Idi Amin, ditador acusado de genocídio Índice
|