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SOCIEDADE
Déficit crescente de moradias baratas no país leva estudantes a procurar ajuda até de entidades humanitárias
Universitários se tornam "sem-teto" na França
FERNANDO EICHENBERG
FREE-LANCE PARA A FOLHA, EM PARIS
Durante um ano inteiro, a brasileira Flávia Tavares, 34, amargou
maus momentos em Paris sem
domicílio fixo, pernoitando na casa de amigos e conhecidos. "Eu telefonava para alguém e dizia: "Hoje vou dormir na sua casa'", contou à Folha. Aluna do curso de cinema da Universidade de Paris 8,
Flávia é mais uma a engrossar as
estatísticas dos estudantes que
têm enfrentado dificuldades para
encontrar moradia nas cidades
universitárias francesas.
Os estudantes têm sido obrigados a passar por uma via-crúcis,
num quadro de saturação das residências universitárias, e com o
preço dos aluguéis privados aumentando sem cessar.
Sem contar a cada vez mais numerosa documentação exigida
pelos proprietários de imóveis, o
que não facilita a vida de estudantes em situação precária.
"Não tenho como oferecer
meus pais como fiadores, o que
funciona aqui para a maioria dos
estudantes. E, como estrangeira,
do Terceiro Mundo, a condição é
ainda pior", justificou Flávia.
Atualmente, ela subloca, com
mais duas amigas, um apartamento de 45 metros quadrados,
por 770 mensais de aluguel.
O cobiçado abrigo foi obtido
graças a um amigo, que deixou o
local para morar com a namorada. Há pouco, as três moradoras
permaneceram um mês sem poder utilizar o chuveiro, por causa
de um problema de vazamento.
"Como estamos sublocando, os
trâmites burocráticos ficam bastante complicados", explicou a
universitária brasileira.
Problema generalizado
O problema de moradia estudantil, no entanto, não está restrito a brasileiros ou estrangeiros em
geral, e se intensificou de tal maneira que passou a preocupar e a
mobilizar o governo.
Para um universitário, hoje,
conseguir uma residência universitária ou alugar um modesto
apartamento se tornou uma estafante maratona. Segundo as estatísticas oficiais, do total de 2,2 milhões de estudantes universitários
franceses, mais da metade, cerca
de 1,2 milhão, vive fora do domicílio familiar.
A oferta de alojamentos nas residências universitárias limita-se
a cerca de 150 mil unidades. As residências universitárias privadas
dispõem de 93 lugares; as pensões, de 33 mil, e os internatos, de
21 mil.
Na Cidade Universitária Internacional de Paris, um parque arborizado abrigando 37 residências para 5.500 estudantes de quase 140 diferentes nacionalidades,
os crescentes pedidos anuais de
inscrições se acumulam.
No Centro Regional de Obras
Universitárias e Escolares (Crous,
na sigla em francês), os 158 mil
alojamentos disponíveis são insuficientes para atender às mais de
500 mil demandas de estudantes.
Em busca de caridade
O sinal de alerta foi dado quando, mais recentemente, estudantes começaram a bater à porta de
associações humanitárias e caritativas, como os centros Sonacotra
e Emaús, normalmente acostumadas a atender mendigos e desempregados sem teto.
Num relatório de maio último,
o Observatório da Habitação
Transitória, que coleta regularmente informações nesses centros, apontava o crescente número de pessoas com dificuldades de
acesso à moradia.
"É o caso, principalmente, da
população estudantil, que se encontra, paradoxalmente, numa situação semelhante à da população precária."
Segundo o Observatório, as solicitações de alojamento por parte
de estudantes às suas organizações filiadas mais do que dobrou
em dois anos: de 3,5%, em 2001,
para 7,5%, em 2003.
Na associação Emaús, a hospedagem emergencial de estudantes
universitários tem sido mais freqüente.
"A cada mês, uns dois ou três
aparecem pedindo ajuda, e permanecem, em média, uns 45 dias
por aqui", confirmou o diretor do
centro parisiense da rua de l'Aube, Souleymane Ba.
O local possui um total de 80 leitos, divididos em quatro por cada
quarto, acessíveis por uma módica diária de 1,50. "Estávamos
hospedando três jovens universitários, um da Mauritânia, um senegalês e um argelino. Por enquanto, o argelino ainda está
aqui, pois não encontra de jeito
nenhum outro lugar para ficar",
disse o diretor.
O libanês Elie Feghlami, 24,
também estudante da Universidade de Paris 8, está há dois anos e
meio pulando de sofá em sofá.
Sua candidatura a um alojamento
foi recusada quatro vezes consecutivas na Cidade Universitária, e
hoje ele vive da generosidade de
amigos, que o acolhem por algumas noites.
"Sou um estudante sem teto. É
um estilo de vida", disse, bem-humorado, à Folha. Sua colega, Sarah Terrise, 20, da Ilha Reunião e
há dois anos e meio na França,
conta que ficou cinco meses sem
domicílio fixo até conseguir uma
primeira morada.
"No início, vivi numa "chambre
de bonne" (o quarto de empregada francês), de nove metros quadrados, sem aquecimento, chuveiro ou cozinha, e pagando um
aluguel de 240 mensais", disse.
Hoje, ela vive num apartamento
de uma só peça, de 24 metros quadrados, com um aluguel de 550.
Francês também sofre
O francês Roch Giraud, 29, estudante de filosofia na Universidade
Sorbonne-Paris 4, é uma prova de
que o problema não atinge apenas
estrangeiros. Durante seis meses,
ele enfrentou a dura concorrência
e filas de cerca de duas horas diante de apartamentos em locação,
sem sucesso.
"Morei por um tempo num
quartinho de empregada e também me socorri na casa da minha
mãe", contou. Mas ele pode se
considerar um caso de sorte, pois
pagou um anúncio classificado
num jornal, obteve resposta e,
atualmente, divide com a namorada um apartamento de 45 metros quadrados, por 620 de aluguel.
"Não conheço nenhum estudante que não tenha dificuldade
em achar um lugar para morar
em Paris. Hoje, a situação é muito
difícil, não apenas porque há pouca oferta mas porque o que tem é
muito caro", disse. De acordo
com a Federação Nacional do
Imobiliário, os aluguéis aumentaram na França, em média, 8,8%,
em 2002, 5,6%, em 2003, e 4,5% só
no primeiro trimestre de 2004.
O governo francês anunciou um
plano plurianual de construção
de 50 mil novos alojamentos estudantis, num prazo total de dez
anos.
Mas, por enquanto, cada um vai
se virando como pode. Depois de
ter sofrido o problema na pele,
Flávia Tavares prometeu a si mesma abrigar na sua casa todo estudante sem teto que lhe pedir ajuda. "É muito ruim ficar sem ter
onde dormir. Mas o resultado é
que minha casa virou um hotel!"
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