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IRAQUE OCUPADO
Lawrence Korb, ex-secretário-assistente da Defesa, afirma que atual presidente não sabe admitir os próprios erros
Bush é assustador, diz secretário de Reagan
MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO
A atual situação de segurança
no Iraque mostra que o governo
dos EUA não tinha um plano para
transformar a vitória militar numa vitória política. Os planejadores político-militares americanos
não ouviram o que vários especialistas lhes disseram antes da guerra porque pensam que nunca cometem erros. George W. Bush jamais admite que possa ter cometido erros, o que é assustador.
A análise é de Lawrence Korb,
ex-secretário-assistente da Defesa
dos EUA (1981-85, durante o primeiro mandato do ex-presidente
Ronald Reagan), diretor do
Council on Foreign Relations, um
dos mais reputados "think tanks"
dos EUA, e autor de, entre outros,
"American National Security"
(segurança nacional americana).
Leia a seguir trechos de sua entrevista, por telefone, à Folha.
Folha - Como a situação de segurança no Iraque chegou a um ponto
tão crítico quanto o atual?
Lawrence Korb - Houve erros
graves. O presidente Bush ignorou os conselhos de seus assessores militares, como os comandantes do Exército e da Marinha, que
sabiam que a situação no terreno
não seria nada do que vinha sendo dito em Washington antes da
guerra. Trata-se de oficiais militares que estiveram no Vietnã, na
Bósnia, no Haiti ou na Somália e
que têm grande experiência em
situações de conflito urbano.
Basicamente, eles disseram a
Bush que os EUA precisariam de
centenas de milhares de soldados
no Iraque para estabilizar a situação e que os americanos não seriam vistos como libertadores pela população local, mas como
ocupantes. O problema é que o
governo decidiu enviar apenas
cerca de 130 mil militares ao Iraque e, com isso, não conseguiu
controlar a situação de segurança
no país. Ademais, ficou impossível vigiar as fronteiras para impedir a entrada de estrangeiros.
O segundo erro grave foi desmantelar a força policial e o Exército iraquianos. Se a maioria dos
integrantes dessas forças tivesse
sido mantida pela coalizão, a situação já estaria melhor. Assim, a
coalizão teve de criar uma organização para cuidar da segurança,
mas ela não foi bem treinada e já
teve de entrar em ação. Com isso,
a nova força iraquiana ficou vulnerável à infiltração de insurgentes, o que agravou ainda mais o
problema de segurança.
Sabemos, por exemplo, que policiais iraquianos mataram alguns
americanos em março e que, em
vários focos de insurgência, os
iraquianos entregaram suas armas aos combatentes que atacavam as forças americanas.
Folha - Isso significa que Bush
deu ouvidos a seu vice, Dick Cheney, ao secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, e ao vice-secretário
da Defesa, Paul Wolfowitz, não é?
Korb - Sem dúvida, o que foi um
erro. Em vez de acreditar no que
lhe diziam seus assessores militares, Bush preferiu ouvir o que dizia Ahmed Chalabi [líder opositor
iraquiano], que insistia em que os
americanos seriam vistos como
libertadores pela
população local.
Em 2 de maio do
ano passado, o
Pentágono, que é
comandado por
Rumsfeld, afirmou que, até o final do verão setentrional de
2003, o número de
soldados americanos no Iraque poderia cair para
cerca de 30 mil.
Indubitavelmente, isso foi um terrível erro de planejamento militar, e o atual governo está pagando alto por isso.
Folha - Seria,
portanto, justo dizer que essa ala da
administração,
que é liderada por
Cheney, vem perdendo força por
conta dos erros de
planejamento para o pós-guerra?
Korb - Creio que sim. Afinal, se
eles ainda tivessem a força de que
dispunham no ano passado, as
tropas americanas já teriam desembarcado na Síria há muito
tempo. É claro que o desejo de
afirmação militar dos EUA existente no pensamento dessas pessoas não foi saciado pela invasão
do Iraque. Acredito que esse grupo tenha perdido poder nos círculos de tomada de decisão e que
o presidente esteja buscando dar
um toque mais multilateralista e
realista à sua política externa.
Folha - O sr. crê, então, que o governo americano realmente tenha
a intenção de dar mais poder à ONU
e a seus aliados estrangeiros, preparando o caminho para diminuir a
presença americana no Iraque?
Korb - Sem dúvida. Em suas últimas intervenções públicas sobre o
tema, Bush vem dando a entender
que deixará [Lakhdar] Brahimi
[chefe da missão da ONU no Iraque] e [o aiatolá Ali al] Sistani
[principal líder da maioria xiita
iraquiana] decidirem quem governará o país após a entrega do
poder político aos iraquianos
[que está marcada para o final de
junho deste ano].
No que concerne à retirada das
tropas americanas do Iraque, todavia, a questão é mais complexa.
Os EUA querem mais ajuda internacional no Iraque por causa do
peso econômico-militar da ocupação. Entretanto
as tropas não poderão deixar o
país tão cedo, pois
a situação poderia
tornar-se caótica
se isso ocorresse.
Folha - A mudança de atitude do
governo tem relação com a eleição
presidencial de
novembro?
Korb - Indubitavelmente, foi por
isso que a administração decidiu
entregar o poder
político aos iraquianos em 30 de
junho. Os planejadores político-militares americanos pensaram
que poderiam reduzir o número
de soldados no
Iraque, pois o país
já deveria ter algumas centenas
de milhares de
soldados e de policiais.
Tudo isso seria muito bem-visto
pela imprensa americana e deveria ser lucrativo eleitoralmente. O
governo planejava cortar para 105
mil o número de militares engajados nas operações no Iraque, mas,
obviamente, isso não será possível por conta do caos que reina no
país nos últimos tempos.
Folha - Essa linha de pensamento
era realista em termos práticos?
Korb - Ela não era realista dentro
do período imaginado. Ou seja,
não é plausível imaginar que seja
possível ter um governo iraquiano autônomo a partir de 1º de julho. Se a administração americana decidir manter essa data, a entrega de poder será muito mais
simbólica do que verdadeira.
Ademais, isso poderá agravar
ainda mais a situação, já que uma
devolução parcial da soberania ao
país fará com que o novo governo
iraquiano seja visto pela população como ilegítimo, como um
fantoche dos EUA. Com isso, a
comunidade internacional também deverá passar a duvidar da
seriedade do esforço americano
de reconstrução do Iraque.
Folha - Como um movimento de
insurgência como o iraquiano deve
ser combatido?
Korb - Primeiro, um número
bem mais elevado de militares é
necessário no Iraque. Segundo, as
forças internacionais, que são lideradas pelos EUA, precisam de
mais tempo para treinar os policiais e militares
iraquianos. Se a
coalizão puder ser
paciente e estiver
pronta para arcar
com os custos de
tal esforço, será
possível combater
a insurgência.
Na prática, uma
coisa é certa: os
EUA não poderão
retirar seus militares do Iraque tão
cedo. Mesmo que
[John] Kerry [virtual candidato democrata à Presidência dos EUA]
seja eleito, os americanos não poderão sair do Iraque,
visto que todos sabem que o preço
de uma retirada
de tropas prematura seria muito
alto no que tange
aos interesses de
segurança dos
EUA. Os soldados
americanos terão
de ficar quase
uma década no país para poder
estabilizar a situação.
Folha - O sr. acredita que seja factível impor a democracia a um país
como o Iraque?
Korb - Não, isso é impossível a
curto prazo. O objetivo americano deve ser estabilizar o Iraque a
longo prazo, não democratizá-lo.
Afinal, isso é muito mais complexo. A constituição de instituições
estáveis e confiáveis leva tempo.
O que ocorreria, por exemplo,
se o líder xiita radical Moqtada al
Sadr fosse eleito presidente do
Iraque numa eleição direta? E se
ele quisesse criar uma teocracia
de estilo iraniano no país? Os
EUA tentariam impedi-lo? Isso
seria um pesadelo para os EUA.
É por isso que penso que a idéia
de democratizar o Iraque não é
realista. Seria ótimo se o país pudesse abraçar as idéias democráticas rapidamente, contudo não
creio que isso seja exeqüível. Os
americanos devem buscar estabilizar a situação para, em seguida,
começar a criar as instituições necessárias para que uma semente
de regime democrático possa ser
plantada no país. O problema é
que é mais fácil falar sobre o tema
do que pôr a teoria em prática.
Folha - É verdade que o governo
Bush tinha uma obsessão pela queda do ex-ditador Saddam Hussein
mesmo antes do 11 de Setembro?
Korb - Indubitavelmente. Em
1997, quando lançaram seu Projeto para o Novo
Século Americano, Cheney,
Rumsfeld, Wolfowitz, [Douglas]
Feith [subsecretário da Defesa] e
[Richard] Perle
[ex-conselheiro
do Pentágono]
disseram que
queriam livrar-se
de Saddam. Paul
O'Neill [ex-secretário do Tesouro
de Bush], que é
um republicano
fiel, afirmou, em
seu livro, que a
queda de Saddam
era um dos principais objetivos
do atual governo
desde o início.
Folha - E quanto
à Síria ou à Coréia
do Norte?
Korb - Parece-me claro que muitos dos assessores
de Bush gostariam de ter invadido a Síria se a situação no Iraque não estivesse tão
ruim. A situação norte-coreana é
complicada, visto que os custos
dessa ação seriam muito altos. Alguns conselheiros de Bush gostariam de atacar a Coréia do Norte
porque pensam que uma política
externa forte apoiada pela força
militar pode ajudar um país a
atingir seus objetivos em geral.
Folha - Não é estranho que Bush
lidere uma cruzada contra ditaduras e, ao mesmo tempo, mantenha
laços estreitos com ditadores, como Pervez Musharraf [Paquistão]?
Korb - Sem dúvida, é por conta
disso que ele acaba criando problemas para seu governo. Quando diz que a democracia é o verdadeiro objetivo da cruzada americana, pois, com ela, as pessoas
serão livres, Bush esquece que, no
mundo real, ele tem de lidar com
Musharraf, com [Hosni] Mubarak [presidente do Egito], com os
russos e com os chineses. Afinal, a
democracia não existe verdadeiramente nesses países.
Bush deve entender que, como
presidente da maior potência global, tem de manter contato com
muita gente cujo histórico não é
motivo de orgulho. É assim que as
coisas acontecem no mundo político. O problema é o presidente
dizer uma coisa e fazer outra.
Essa tentativa de dar um caráter
moral à política externa americana não convence mais ninguém. E
ainda mais grave é o fato de ele
não reconhecer que age dessa forma, confundindo moralidade
com certeza moral.
Folha - Bush realmente acredita
no que diz a esse respeito?
Korb - Sim, e isso é seu aspecto
mais assustador. Uma coisa é um
líder dizer algo pouco ou nada crível porque isso é necessário politicamente, outra é ele realmente
acreditar no que diz. Bush não é
estúpido e tem um senso político
aguçado. Contudo ele não é uma
pessoa de raciocínio muito aberto
ou sofisticado. Gosta de ver tudo
em preto ou em branco e se esquece da existência dos inúmeros
matizes de cinza.
O presidente busca soluções
simples para problemas complexos. Infelizmente, todavia, isso
não dá certo em política externa.
Por exemplo, durante a Guerra
Fria, os EUA cooperaram com os
militares argentinos ou brasileiros porque isso fazia parte de seus
interesses nacionais. Ora, por que
a situação seria diferente agora?
Folha - O caos iraquiano atual demonstra que a guerra foi um erro?
Korb - A situação atual mostra
que o governo não tinha um plano para transformar a vitória militar numa vitória política. Os planejadores político-militares dos
EUA não ouviram o que vários especialistas lhes disseram antes da
guerra porque pensam que nunca
cometem erros. Bush sempre se
recusa a admitir que possa ter cometido erros, o que é assustador.
Lembro que, no tempo em que
trabalhava com o ex-presidente
Reagan, este reconheceu rapidamente que havia cometido um erro ao enviar marines ao Líbano
[centenas morreram no país num
atentado com um caminhão-bomba, em 1983]. Mesmo assim,
ele foi reeleito. É uma grande falha
não admitir os próprios erros.
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