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TRANSIÇÃO NA ARGENTINA
Segundo dois expoentes da atual boa fase do cinema argentino, população seguirá novo governo passo a passo
Argentino exigirá mudança, dizem cineastas
OTÁVIO DIAS
DA REDAÇÃO
A população argentina está esperançosa em relação ao governo
de Néstor Kirchner, eleito presidente da Argentina na última
quarta-feira, mas, cautelosa,
acompanhará passo a passo as decisões do novo presidente e exigirá que ele avance na construção
de um novo modelo para o país.
Assim pode ser resumida a atitude do cidadão comum diante
do novo momento político, segundo dois cineastas argentinos
entrevistados pela Folha.
Juan José Campanella, 43, e Pablo Trapero, 31, são representantes da atual geração de cineastas
argentinos que, apesar da profunda crise dos últimos anos (em especial desde 2001), têm realizado
filmes em quantidade e com qualidade, com boas bilheterias.
O primeiro é diretor de "O Filho
da Noiva" (2001), sucesso de bilheteria no Brasil. O segundo filmou "El Bonaerense" (2002), ainda inédito no circuito brasileiro.
A boa fase do cinema argentino,
apelidada de "buena onda", traduziu-se, ao longo de 2002, em 51
estréias (no Brasil, foram 35), 76
prêmios internacionais e a parcela
de 12% do público nas salas do
país (30 milhões de espectadores).
Com esses resultados, ganhou
força na crítica dentro e fora do
país a idéia de que o cinema argentino vive um boom de produção e de qualidade e, embora os
filmes nem sempre tratem explicitamente da crise econômica,
eles têm tocado em temas relevantes na Argentina de hoje, como a violência, a falta de perspectivas, as frustrações pessoais.
Como os cineastas têm demonstrado, nesse momento difícil, uma capacidade especial de
captar e traduzir o
sentimento do argentino comum, a
Folha propôs a
dois deles que refletissem sobre algumas questões
relacionadas à nova fase do país.
Leia abaixo seus
comentários, feitos separadamente por telefone de
Buenos Aires.
A sensação dos cidadãos argentinos no momento está entre a incerteza e a esperança
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MENEM
J. J. Campanella - Essa eleição foi
como um grande coito interrompido. Porque todos queriam que
Menem [o ex-presidente Carlos
Menem, que renunciou à disputa
no segundo turno na última quarta-feira] perdesse por 80%. Lamentavelmente, essa eleição não
pode ser analisada de um ponto
de vista normal porque muitas
pessoas votaram baseadas em cálculos de como derrotá-lo. Sem
Menem, os percentuais de todos
os outros candidatos teriam sido
diferentes. Por outro lado, a morte política definitiva de Menem fará uma diferença incrível. Menem
é nosso "Terminator". Quantas vezes teremos de matá-lo?
"QUE SE VAYAN TODOS"
Campanella - Esse foi um slogan
que surgiu no final de 2001, no auge da crise do governo De la Rúa,
quando as pessoas manifestavam-se com a raiva e não com o
raciocínio. Mas a grande maioria
não quer uma revolução, quer
uma evolução. Não quer uma
mudança de sistema, mas exige justiça, regras de jogo limpo, honestidade. As pessoas
estão cansadas da
violência. Eu também, que me criei
durante a ditadura dos anos 70,
prefiro o tempo
ao sangue.
PARTICIPAÇÃO
Pablo Trapero - No primeiro turno, houve um
percentual muito pequeno de votos em branco, nulos e de abstenções. É um reflexo muito claro da
decisão que tomou o argentino
comum de participar e opinar na
política. Se você toma um táxi ou
vai a um bar, qualquer pessoa é
um analista político. Em cada mesa, há alguém que tem uma solução para o país, uma idéia política
ou econômica.
Campanella - Não sei por que a
imprensa dizia que as pessoas não
estavam interessadas. Não se falava de outra coisa. E se falava com
um nível de inteligência e de raciocínio que nunca existiu. Nesta
eleição, não ouvimos pessoas gritando velhos slogans como "Viva
Perón" ou "Vamos, radicais". As
pessoas não estavam fanatizadas
por ninguém e por nada, mas
buscavam analisar as propostas.
RENOVAÇÃO POLÍTICA
Campanella - Por mais que façamos um esforço de otimismo e de
boa vontade para acreditar em
Kirchner quando ele diz que quer
mudar, a verdade é que ele chega
ao poder com o apoio dos mesmos esquemas de sempre. Teria
sido preferível que um novo partido tivesse ganho, fosse de esquerda ou de direita. Logo, há uma
frustração em relação às expectativas de mudança expressas tão
claramente no final de 2001. Mas,
no sentido da realidade, é possível
que esses partidos novos, alternativos, necessitem de mais quatro
anos para se fortalecerem. Nos
próximos meses, haverá uma série de eleições e as pessoas, pelo
voto, poderão renovar todo o corpo político. Vamos ver se farão isso. No primeiro turno, os radicais
[da União Cívica Radical, uma
das bases de sustentação do ex-presidente Fernando de la Rúa,
que renunciou em dezembro de
2001] praticamente desapareceu,
e seus elementos bons formaram
novos partidos. Falta que aconteça a mesma coisa com o peronismo, que, esperemos, já esteja a caminho de sua autodestruição.
GOVERNO KIRCHNER
Trapero - A sensação dos argentinos no momento está entre a incerteza e a esperança. No primeiro turno, houve um desejo claro
das pessoas de rechaçar Menem,
um esquema político e um modelo de país que levaram a Argentina à situação atual. Mas também
há incerteza. Diferentemente do
presidente De la Rúa - que chegou à Presidência em 1999 com
muito apoio [elegeu-se no primeiro turno com 50,4% dos votos], mas fez um governo contrário ao que as pessoas que votaram
nele desejavam-, agora temos
um presidente que chega ao poder numa situação de transição
para um novo modelo. Kirchner,
que perdeu a chance de receber
uma grande quantidade de votos,
terá legitimidade, mas sofrerá
uma pressão muito grande para
fazer o que as pessoas querem. Os
principais desejos têm a ver com o
aumento da produção e das possibilidades de trabalho. Todos estão dispostos a trabalhar, na vida
cotidiana e na vida política, para
que as coisas melhorem. É claro
que os resultados não virão em
meses. Mas a população seguirá
passo a passo o novo governo.
Campanella - O pior da crise do
ano passado era a crise anímica, o
sentimento de desmoralização, de
que não havia salvação para o
país. Agora, percebe-se o início de
um otimismo. Não porque estejamos certos de que tudo vai melhorar. Mas porque sabemos o
que é necessário para ter a possibilidade de uma melhora. Não diria que estamos vivendo um momento de felicidade. Mas não há
mais o profundo desapontamento do ano passado. Foi algo terrível, nunca havia visto nada igual.
A crise trouxe um apequenamento dos indicadores econômicos, mas espiritualmente crescemos muito
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SOLIDARIEDADE
Trapero - Existe agora, na Argentina, a idéia de que as mudanças devem ser feitas no cotidiano,
de que cada um deve agir em seu
círculo mais próximo. Há uma
proposta de construir a partir da
soma das mudanças de cada um,
de cada pequeno grupo, com o
objetivo de obter uma mudança
mais global. Isso se traduz em pequenas atitudes, comentários e situações do cotidiano, em coisas
quase imperceptíveis. Por exemplo, as pessoas, em suas próprias
casas, já separam
os restos de papel,
papelão etc. para
que as pessoas
que vivem de juntar esse material já
tenham seu trabalho facilitado. Antes, quando alguém mexia no lixo na casa de outra pessoa, essa
pessoa provavelmente chamaria a
polícia. Pode ser
que, em um ano,
tudo volte a ser como antes. Ou
que surjam novas mudanças. Mas
espero que esse comportamento
continue.
Campanella - Descobrimos uma
grande qualidade em nós mesmos, a possibilidade de sermos
solidários. A classe média aqui
-e creio que no Brasil também- vivia completamente isolada da classe mais baixa. Era como se vivessem em países diferentes. Embora de forma traumática, a crise colocou a classe média
em contato próximo com a classe
baixa. Tomamos consciência de
que o problema é de todos. Ou
nos salvamos todos ou ninguém
se salva. A crise trouxe um apequenamento dos indicadores macroeconômicos, mas espiritualmente crescemos muitíssimo. E
isso era necessário porque os argentinos eram muito irresponsáveis em relação a seu próprio país.
"BUENA ONDA"
Trapero - Todo mundo está refletindo sobre o que está acontecendo, como gostaríamos que
fosse o mundo, a
Argentina. Não é
casual que haja
um ressurgimento da expressão
cultural, inclusive
do cinema. Mas
isso não quer dizer que a produção cultural se remeta diretamente
à crise. As pessoas
estão trazendo à
tona temas muito
pessoais, que estão relacionados
com um país em crise, mas que
não resultam necessariamente
num cinema social e político. Há
uma distância entre essa boa fase
que vivemos e o cinema político
dos anos 70 e 80. A idéia política
faz parte da vida cotidiana representada no filme, mas não supera
o filme. E os filmes estão mais interessantes como filmes. E isso fez
com que houvesse uma aproximação com o público. O público
está interessado por temas mais
complexos, mas os filmes também estão mais próximos do desejo e da sensibilidade do público.
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