|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ARTIGO
A queda de Menem e o fim da cultura do capitalismo selvagem
JORGE LANATA
Na última terça-feira, dia 13, o
poder de Carlos Menem, o homem que governou a Argentina
durante dez anos e pretendia se
reeleger, caiu como um castelo de
cartas com a intensificação dos
rumores de que ele renunciaria à
disputa no segundo turno da eleição presidencial.
A notícia tinha acabado de ser
confirmada, na quarta-feira, 14,
quando, durante spot na televisão
dirigido por Ramiro Agulla -o
mesmo que maquiou a campanha eleitoral e a comunicação governamental do derrocado Fernando De la Rúa-, Menem disse
que, como Eva Perón, renunciava
"às honras, mas não à luta".
A citação histórica não era casual: na noite anterior, enquanto a
Argentina inteira se mantinha em
suspense diante da indecisão do
candidato, o círculo mais próximo de Menem previa "um novo
17 de outubro", fazendo referência ao dia da primavera de 1945
em que a população se mobilizou
para libertar o general Perón da
prisão e o proclamou presidente.
O sonho dos poucos que restavam no círculo menemista não
passou de um desejo impossível
-apenas algumas centenas de
militantes se concentraram diante do hotel Presidente, em Buenos
Aires, para aplaudir Menem, que
saiu ao balcão em dois momentos
e repetiu sua frase já famosa: "Não
os decepcionarei".
Na realidade, ele os decepcionou, sim, apenas algumas horas
mais tarde.
Na crise, o peronismo voltou a
manifestar seu destino de partido
verticalista, esvaziado de seu conteúdo histórico e transformado
num grupo de pressão que se acomoda em qualquer lugar onde esteja batendo sol: até mesmo o governador de La Rioja, a Província
de Menem, terminou por alinhar-se com Néstor Kirchner, o adversário de Menem no segundo turno, amplamente favorito.
A renúncia de Menem ao segundo turno eleitoral foi seu último e desesperado gesto para se
aferrar ao poder: Menem tentou
negociar com Duhalde um pacto
de imunidade que lhe permitisse
continuar em liberdade durante o
novo governo e topou com a recusa do futuro presidente, Néstor
Kirchner, que declarou: ""Não
chegamos até aqui para negociar
com o passado".
Foi uma senadora desconhecida
de La Rioja quem respondeu ao
receio jurídico de Menem, oferecendo a ele a chance de ocupar
seu cargo. Se Menem aceitar, viverá os próximos quatro anos sob
a proteção da imunidade parlamentar.
Assim, o papel futuro de Menem é incerto: ele ainda conta
com algum respaldo econômico,
baseado no dinheiro negro da
corrupção e dos vínculos mais ou
menos sólidos que tem com os
proprietários de alguns meios de
comunicação.
Talvez tudo isso baste para que
ele lance contra o novo presidente
farpas constantes, como um leão
ferido. A imagem pública do ex-presidente passa por seu pior momento: sua decisão de abandonar
a eleição foi tomada no momento
em que todos os pesquisadores
apostavam em sua derrota por
70% contra 30% dos votos, sendo
que alguns se aventuravam a
prognosticar porcentagens ainda
piores -para alguns deles, Menem teria até mesmo menos do
que os 24% dos votos conseguidos no primeiro turno.
A porcentagem dos votos em favor de Kirchner era tão grande
que chegou a assustar seu principal padrinho, o presidente interino Eduardo Duhalde. Um candidato com mais de 70% dos votos
se torna impossível de ser manipulado.
Por isso, ninguém descarta a
possibilidade de que dois inimigos íntimos como Duhalde e Menem tenham negociado algumas
condições, num encontro no
qual, para citar Jorge Luis Borges
(1899-1986), "os uniu não o amor,
mas o medo".
O menemismo caiu em meio a
uma debandada da tropa própria,
entre declarações que suscitaram
a vergonha alheia e fortes demonstrações de ressentimento
que chegaram ao nível das agressões físicas contra jornalistas e fotógrafos em La Rioja.
Com Menem, nesta semana, desaparece também uma cultura
que dominou o cenário político e
social da Argentina durante dez
anos: a apologia do capitalismo
selvagem, a pizza com champanha, a exclusão de quase dois terços do país dos benefícios da economia e uma visão confusa e quase anarquista do papel do Estado,
visão essa que levou a seu virtual
desaparecimento em razão das
privatizações e dos monopólios
privados amparados pela lei.
A intervenção aberta e declarada do Poder Executivo na Justiça,
os indultos e o estado geral de impunidade diante dos casos de corrupção, tudo isso marcou aqueles
anos a fogo. Sua saída, assim como seu começo, não esteve à altura das circunstâncias.
Tradução de Clara Allain
Texto Anterior: Transição na Argentina: Argentino exigirá mudança, dizem cineastas Próximo Texto: Quem é: Lanata fundou o "Página 12" aos 26 anos de idade Índice
|