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TRANSIÇÃO NA ARGENTINA
Bom nível de humor dos argentinos e silêncio da classe média esvaziam, por ora, o protesto que sacudiu o país
Grito "que se vayan todos" fica parado no ar
CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL À ARGENTINA
No dia 26, apenas 24 horas depois de Néstor Kirchner assumir a
Presidência, a praça de Maio, onde fica a sede do governo, será de
novo ocupada pelos "piqueteros",
o movimento de desempregados
que utiliza o bloqueio de ruas e estradas para dar visibilidade a seus
protestos.
O ato do dia 26 é em homenagem a Maximiliano Kosteki e Darío Santillán, líderes "piqueteros"
mortos pela polícia em manifestação no dia 26 de junho de 2002.
Foram as duas mortes e os consequentes atos de protesto que levaram o presidente Eduardo Duhalde a antecipar as eleições presidenciais para abril/maio, em vez
de outubro, a data constitucional.
Significa que o grito "que se vayan todos", alçado pelos "piqueteros", estará de novo na praça
histórica antes mesmo que o novo
presidente se acomode ao "sillón
de Rivadavia", a poltrona presidencial?
Não, pelo menos por enquanto.
Se é verdade que todas as pesquisas indicam que a rejeição aos
políticos continua elevadíssima, é
igualmente verdade que o "que se
vayan todos" parece parado do ar.
Talvez porque o humor do público tenha mudado em relação à
sua situação, talvez porque sempre houve diferentes prioridades
entre os movimentos de protesto.
Sobre o humor do público: o Índice de Confiança do Consumidor, medido pela Universidade
Torcuato di Tella, atingiu nível
não muito distante do melhor registro, obtido quando mudou o
governo em 1999 (saiu Menem,
entrou Fernando de la Rúa).
Chegou, então, a 52,3% o número de argentinos que achavam
que sua situação pessoal e a do
país estavam melhores. Agora,
são 45,2%, o que é extraordinário,
se se considerar que a Argentina
mal começa a sair de sua mais
grave crise econômica e social.
Confluência desfeita
O segundo fator a tirar força do
protesto ruidoso vem do fim, ao
menos temporário, da confluência entre dois tipos de irritação, o
da classe média e o dos pobres.
O movimento de protesto começou, ainda no período Menem,
com os "piqueteros", termo de
origem militar que significa "pequeno grupo de soldados empregados em algum serviço". Popularizou-se, no entanto, com os piquetes que buscam impedir a entrada de funcionários nas fábricas
quando de uma greve.
Estendeu-se, afinal, para os desempregados que bloqueiam estradas ou ruas para tornar mais
visível o seu protesto. A reivindicação central do movimento era
trabalho e, na impossibilidade de
obtê-lo, subvenção oficial.
O governo de Eduardo Duhalde, impotente para gerar emprego, tratou logo de cuidar da segunda hipótese: criou, em janeiro
de 2002, o plano "Jefes e Jefas de
Hogar" (chefes e chefas de família), uma subvenção de 150 pesos
(pouco mais que isso em reais),
para desempregados com filhos
menores de 18 anos matriculados
na escola. Hoje, 2,4 milhões de famílias são atendidas.
Não calou de início o protesto,
mas o mitigou, ainda mais que a
recessão profunda que a Argentina sofreu por quatro anos começou a ser contida a partir do terceiro trimestre de 2002.
Por extensão, o desemprego parou de aumentar e começa timidamente a declinar.
A prática do clientelismo, viés
clássico do peronismo como de
todo movimento populista, não
foi o único fator a influir na relativa diminuição do grito "que se vayan todos". Entrou também outro
clássico: a tentativa de cooptação
por uma formidável constelação
de partidos de ultra-esquerda,
com a consequente defesa de uma
agenda absolutamente irrealista.
Cooptação que vale não apenas
para o movimento "piquetero",
mas também para as Assembléias
de Bairros, que se multiplicaram
por diferentes cidades a partir da
desconfiança com as lideranças
políticas convencionais.
No livro "A Las Calles", relato
do movimento "piquetero", Aníbal Kohan, do grupo musical popular "Santa Revuelta", lista 31
grupos do gênero, mais micropartidos de esquerda.
Na Assembléia Interbairros Nacional de março de 2002, entre as
resoluções aprovadas estava o
não-pagamento da dívida externa; "fora o FMI da Argentina";
nacionalização dos bancos e do
comércio exterior; reestatização
das empresas privatizadas e dos
fundos de pensão, "sem indenização"; "nem uma demissão mais".
Justas ou não, são claramente irrealistas. Entre os que pensavam
apenas em emprego e salário e os
que defendiam uma revolução socialista, o abismo era imenso e, o
choque, inevitável.
Descreve-o assim o jornalista
Ángel Jozami, no livro "Argentina
- A destruição de uma Nação": "O
constante choque entre os que
vêem nas Assembléias organismos para atender problemas concretos dos bairros e os que a concebem como germes de órgãos de
poder de um novo regime está
presente desde a sua aparição".
Epopéia ou declínio?
Graciela di Marco, da Universidade Nacional de San Martín, fez
um estudo, com outros sociólogos, sobre "Movimentos Sociais
Emergentes", no qual diz que há
dois enfoques sobre tais manifestações coletivas: a que lhes dá
"tons épicos" e a outra que "os
considera fenômenos interessantes no seu momento, mas que,
atualmente, estão em declínio".
É razoável supor que o "declínio" se acentuará agora que a
confluência com a classe média
está desaparecendo ou já desapareceu. A classe média se mobilizou por um fator distante de qualquer projeto socialista: tratava-se
apenas de reivindicar a devolução
dos depósitos bancários trancados pelo chamado "corralito", a
retenção do dinheiro nos bancos
para evitar a quebra do sistema.
Sete milhões de argentinos ficaram presos no "corralito". Daí a
bater panelas e gritar "que se vayan todos" era um passo.
Com o tempo, no entanto, uns
foram buscar o dinheiro nos tribunais, outros picharam agências
bancárias, mas todos acabaram
recebendo de volta, ainda que raramente nas condições que desejavam.
Por isso, o dinheiro está ficando
nos bancos mesmo agora que o
"corralito" foi eliminado. Dá um
bom rendimento, certamente
maior do que bater panelas nas
ruas.
Desfeita a confluência entre a
classe média, com a consequente
visibilidade midiática que ela gera, e a massa de desempregados,
que continua esperando trabalho
ou subsídio, fica mais fácil entender porque Kirchner se atreveu a
dizer, quinta-feira, em programa
de TV:
"Entro [na Casa Rosada, sede
do governo] para ficar quatro
anos".
Não deixa, de todo modo, de ser
uma frase ousada em um país em
que, nos 20 anos de restauração
democrática, 3 de seus 5 antecessores não puderam cumprir o juramento de ficar na Casa Rosada
pelo prazo legal.
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