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TRANSIÇÃO NA ARGENTINA
Na Província que governou, eleito lega bons índices sociais e sofre duras acusações de clientelismo
Kirchner é "deus" e "diabo" em Santa Cruz
ELAINE COTTA
ENVIADA ESPECIAL A
RÍO GALLEGOS (SANTA CRUZ)
O presidente eleito da Argentina, Néstor Kirchner, deixou em
Santa Cruz, a Província que governou nos últimos 12 anos, um
rastro de assistencialismo, alguns
dos melhores índices sociais do
país e fortes acusações de práticas
clientelistas e centralizadoras.
"Ele sempre conduziu a Província como se fosse uma estância
sua. Nunca foi capaz de receber
críticas e sugestões e, em 12 anos,
nunca abriu nem cinco minutos
em sua agenda para ouvir a oposição," reclama Omar Muñiz deputado oposicionista de Santa Cruz.
Essa acusação, local, vai ganhando dimensão nacional. "Há
um grande risco em Kirchner:
comportar-se como em Santa
Cruz", disparou, anteontem, Elisa
Carrió, candidata derrotada à
Presidência.
"Em uma Província com 200
mil habitantes, o governador tende a ser aquele que monopoliza a
opinião, a decisão. Se ele tiver essa
atitude [como presidente], terá
grandes problemas, porque a Argentina não é um feudo", disse
Carrió.
Kirchner rebate as críticas afirmando que a aprovação popular é
a sua melhor defesa. "Pergunte à
população de Santa Cruz, não a
meia de dúzia de integrantes da
oposição. Aqui eu obtive mais de
80% dos votos no primeiro turno
e isso é mais que uma mostra de
que o povo dá respaldo ao meu
governo."
A mobilização popular que o recepcionou no aeroporto de Río
Gallegos na noite da última quinta-feira reforça o argumento de
Kirchner. Milhares de pessoas enfrentaram o frio de -1ºC para
aplaudir e homenagear o primeiro presidente da história da Argentina nascido na região da Patagônia. "Ele foi ótimo governador, vai ser um bom presidente",
afirmou um dos moradores da cidade que estava em pé, no frio, à
espera de Kirchner.
Controle total
O jornalista Daniel Gatti, autor
do livro "Kirchner: o Amo do
Feudo", diz que o presidente eleito pratica um estilo de política
clientelista e que o elevado volume de subsídios que distribui à
população é uma forma de monitorar votos.
"Ele impediu o desenvolvimento industrial e de qualquer outra
atividade que não pudesse controlar e fez com que o comércio se
tornasse economicamente dependente do Estado", disse Gatti.
Em Santa Cruz, 47% da população trabalha para o governo. O
restante recebe algum tipo de
subsídio, seja para alimentação
ou calefação -aqui, todas as casas, até as mais pobres, têm aquecimento a gás. Kirchner também
investiu pesado na construção de
casas populares, escolas e hospitais. Há um posto de saúde em cada bairro, até nos mais distantes.
Distribuição de renda
Diante disso, qual é o problema
de um governo que gasta boa parte do que arrecada em programas
sociais e de assistência à população mais carente? "Nenhum", responde o deputado Muñiz. A questão, segundo ele, é que esse sistema não pode se transformar em
política permanente de governo.
"A assistência é um mecanismo
provisório que possibilita a distribuição da renda e promove uma
maior justiça social. Mas, aqui, as
pessoas não caminham sozinhas.
Elas dependem do governo para
comer, e a expectativa é que as
coisas continuem assim nos próximos 20 anos."
Os números demonstram: Santa Cruz tem a melhor distribuição
de renda do país. As contas públicas, ao contrário da maioria das
Províncias argentinas, são superavitárias e a taxa de desemprego
é de 3,5%. Em todo o país, os desempregados são 17,8%, e os subempregados chegam a 19,9%.
A Província também tem uma
das menores taxas de pobreza da
Argentina. Em toda Santa Cruz,
apenas 5,1% das crianças entre 5
anos e 17 anos não frequentam a
escola. Essa taxa é a menor do
país. Na Argentina, 12,9% das
crianças e adolescentes estão fora
da escola.
Orçamento
Atualmente, cerca de 30% do
orçamento vem do recebimento
de royalties das empresas que exploram petróleo e gás na região. A
pesca e a criação de carneiro são
as duas outras atividades econômicas da Província, junto com o
turismo.
Em 2002, segundo dados da Assembléia Legislativa, o orçamento
administrado por Kirchner beirava os 500 milhões de pesos (ou R$
537 milhões). Calcula-se que, em
12 anos de mandato, passaram
pelos cofres da Província no mínimo 7 bilhões de pesos (R$ 7,5 bilhões).
"O problema é que não temos
uma atividade econômica que
movimente a região. Acredito que
Santa Cruz tenha condições de
criar trabalho genuíno, sem que
as pessoas precisem depender
completamente dos serviços de
assistência às necessidades mais
básica da população", assinala
Muñiz.
Segundo estudo realizado pelo
governo, até a década de 80 o setor pesqueiro era um dos mais
importantes na economia da Província. Mas a falta de implementação de uma infra-estrutura portuária prejudicou os produtores
locais que, aos poucos, foram desistindo desse tipo de atividade
econômica.
A retomada veio com a chegada
de empresas pesqueiras estrangeiras, principalmente espanholas. A pesca de truta e salmão,
abundantes na região, cresceu
mais de 160% entre 1988 e 1996,
ano em que foi, sozinha, responsável por 80% da arrecadação. A
atividade é desenvolvida nas cidades Puerto Deseado e Puerto San
Julián, que chegaram a ficar inativas durante alguns anos.
"O problema é que aqui não há
emprego. Há quem trabalhe para
o governo e quem receba ajuda,
mas os jovens não conseguem
oportunidade de trabalho e têm
de ir embora", afirmou o taxista
José Hernandez, pai de três filhos.
"O meu [filho] mais velho saiu de
casa. Foi procurar emprego em
Buenos Aires", disse.
O jornalista Daniel Gatti também critica o fato de Kirchner se
autodenominar um político que
segue uma linha de política econômica mais heterodoxa.
"Seu tema desconhecido preferido é a economia, se define como
neokeynesiano, mas antes foi um
peronista próximo de [Carlos]
Menem e amigo e admirador de
[Domingo] Cavallo, enquanto a
amizade lhe rendeu frutos", disse
Gatti, aludindo ao ex-presidente e
seu ministro da Economia.
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