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GEOPOLÍTICA
Desde Guerra de Kosovo, EUA evitam acionar aliança para não perder autonomia; organização quer modernizar-se
Desprestigiada, Otan vive crise de identidade
MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO
Apesar da semana de festa que
viveu graças à criação de uma nova aliança estratégica com a Rússia e de ter dez nomes na lista de
países que pleiteiam aderir a seus
quadros, a Otan atravessa uma
grave crise de identidade, como
admitiram seu secretário-geral,
George Robertson, e o secretário
de Estado dos EUA (o país mais
influente da aliança militar), Colin Powell, na última quarta-feira.
Nesse dia, ambos e o chanceler
russo, Igor Ivanov, decretaram "o
fim da Guerra Fria" e selaram a
criação do Conselho Otan-Rússia,
que permitirá a Moscou participar de processos de tomada de
decisão da aliança ligados a temas
de interesse mútuo, como o terrorismo e o controle da proliferação
de armas de destruição em massa.
Todavia Robertson e Powell não
deixaram de reconhecer as falhas
das atuais estruturas da Otan. Para o primeiro, que lançou a chamada "agenda de mudança", a
aliança "deverá transformar-se
radicalmente se quiser manter-se
eficaz no novo ambiente da segurança mundial". "Se não se modernizar, ela será marginalizada."
De acordo com Powell, os aliados europeus de Washington deverão comprometer-se a realizar
um esforço considerável para elevar suas despesas com a segurança do continente e com a internacional, buscando coordenar a alocação de seus recursos para consolidar o ainda virtual "aparato de
segurança" da União Européia.
Do ponto de vista simbólico, a
fundação do novo órgão é um fato
histórico, segundo especialistas
ouvidos pela Folha. Afinal, em
1949, a Otan foi criada para garantir a manutenção das fronteiras
geopolíticas européias e para conter o avanço do bloco comunista.
Ademais, Moscou liderava o Pacto de Varsóvia (a aliança militar
rival, fundada em 1955).
"Desde que Bill Clinton começou a insistir em expandir a aliança para o leste da Europa, na década passada, Washington busca
convencer os russos de que isso
não visa a ameaçá-los nem a minar seus interesses na região. Ora,
não há nada mais simbólico para
reiterar essa posição do que acolher a Rússia dentro dos quadros
da Otan", explicou Ole Holsti, co-autor de "Unity and Disintegration in International Alliances"
(unidade e desintegração em
alianças internacionais).
Contudo, apesar de toda a pompa, os especialistas suspeitam que
o novo conselho possa constituir
um órgão estéril, como foi seu
predecessor, o Conselho Permanente Conjunto Otan-Rússia
(1997), criado para atenuar a oposição russa à primeira expansão
da aliança para o leste do continente europeu (1999).
"Como hoje a Otan não é mais
tão importante quanto foi no passado, é mais fácil aceitar a presença da Rússia em alguns de seus fóruns. Porém o papel de Moscou
será bastante limitado, já que se
restringirá a temas que os países-membros da Otan, sobretudo os
EUA, considerarem passíveis de
debate com os russos", apontou
Bruno Tertrais, da Fundação para
a Pesquisa Estratégica (Paris).
Fórum caótico
É irrefutável que o aspecto militar ofensivo da Otan vem sendo
esvaziado desde a ofensiva contra
os sérvios, ocorrida em 1999. Prova disso foi a campanha militar no
Afeganistão. Nela, apesar de os
aliados terem acionado a cláusula
de defesa mútua da aliança após
os ataques de 11 de setembro último, Washington preferiu formar
uma aliança com parceiros específicos, desconsiderando a oferta
da organização como um todo.
"Na Guerra de Kosovo, o governo dos EUA percebeu que, em situações de guerra, a estrutura decisória da Otan se tornava um entrave, um fórum caótico. Afinal,
cada etapa de uma ofensiva militar tinha de ser debatida com todos os outros 18 membros da
aliança, havendo a obrigação jurídica de que a resolução final fosse
consensual", explicou Tertrais.
"Os europeus estranharam a
atitude de Washington. Todavia,
de uma ótica realista, ela foi normal, já que o comando militar
americano não queria ver suas decisões contestadas por estrangeiros, mesmo aliados", analisou Jonathan Stevenson, do Instituto
Internacional para Estudos Estratégicos (Londres). Para ele, na cúpula de Praga, em novembro, o
tema terá de ser tratado.
De acordo com Joseph Nye, reitor da Kennedy School of Government, da Universidade Harvard
(EUA), a transformação da aliança é normal num quadro em que
não há mais os riscos da Guerra
Fria. "Com o fim da ameaça soviética, a Otan era fadada a ver seu
papel político fortalecido em detrimento do aspecto militar."
Assim, lentamente, a aliança se
torna uma instituição mais política. Contudo seu papel militar ainda existe. Isso sobretudo no que
se refere à manutenção da segurança no continente europeu e ao
intercâmbio de informações entre
as Forças Armadas de seus países-membros. Este, aliás, também
permitiu que forças canadenses,
britânicas e alemãs participassem
da campanha no Afeganistão.
"Como os EUA estão cada vez
mais preocupados com a instabilidade da Ásia e menos interessados na "estabilidade européia", há
uma mudança de foco dentro da
Otan. Robertson percebeu isso e
tentou relançar a aliança como
um órgão mais adaptado às novas
ameaças que pesam sobre a comunidade internacional, como o
terrorismo", afirmou Tertrais.
Senão a aliança correrá o risco
de transformar-se numa instituição responsável quase exclusivamente pela segurança européia.
"Com isso, os EUA poderiam forçar os europeus a tomar conta de
seu "quintal'", disse Tertrais. O
problema é que isso já existe na
Organização para Segurança e
Cooperação na Europa, da qual já
fazem parte, além dos países europeus, os EUA, a Rússia e alguns
países da Ásia central.
Para Nye, apesar de todas as críticas, o papel político da aliança
não pode ser negligenciado. "Não
podemos esquecer que a Otan,
amparada por seu potencial militar, tem um valor político crucial
no que concerne a criar estabilidade na Ásia central", lembrou.
Contrapeso?
Pensando justamente na crescente influência dos EUA na Ásia
central a Rússia anunciou, na última quarta-feira, o fortalecimento
de sua cooperação militar com
outras cinco ex-repúblicas soviéticas da região, formando uma organização que lembra a Otan.
Ademais, Ivanov reiterou que a
expansão da Otan para o Leste
Europeu seria "um vestígio de um
modo de pensar ultrapassado".
Assim, a tão comentada crise de
identidade da aliança ocidental
-por causa do final do confronto
bipolar da Guerra Fria- talvez
tenha ocorrido cedo demais.
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