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Moradores de bairros mais ricos, predominantemente brancos, temem cerco e organizam grupos de vigilância
Elite se protege contra "onda indígena"
DO ENVIADO ESPECIAL A LA PAZ
A indefinição política, a violência, a falta de produtos básicos, o
medo da "onda indígena" vinda
do interior e antecedentes históricos fizeram com que os assustados moradores de bairros de classe média e alta de La Paz, predominantemente brancos, organizassem comitês de segurança e
trouxessem tropas de elite do
Exército vindas de fora da capital.
Na zona sul da cidade, onde vive
quase toda a elite econômica e política do país (inclusive o novo
presidente, Carlos Mesa), médicos, engenheiros e empresários,
entre outros, se organizaram em
grupos de vigilância armados para proteger sua vizinhança.
Na última segunda-feira, um
grupo de camponeses tentou entrar no bairro, mas foi impedido
por uma barreira de Exército, que
matou seis camponeses aymarás.
Depois desse conflito, muitos
moradores abandonaram as casas mais isoladas do bairro.
No dia seguinte, a segurança foi
reforçada pela chegada dos "rangers de Santa Cruz", tropa de elite
sediada no leste do país. Havia o
temor de que os soldados de La
Paz -quase todos aymarás-
poderiam mudar de lado. (Há rumores de que isso tenha ocorrido
em El Alto, na região de La Paz, e
em Patacamaya, a 100 km da capital, durante um enfrentamento
com mineiros).
"Não me lembro de nenhum
amigo que não tenha uma arma
em casa", disse um comerciante
alemão, dono de uma loja no centro de La Paz, que ficou fechada
durante toda a semana.
Na última sexta-feira, um repórter de TV travou a seguinte
conversa com a liderança de um
grupo de manifestantes localizado no bairro periférico de Achachicala, por onde passa quase toda a água que abastece La Paz.
"Compadre, vocês estão aqui
para garantir o fornecimento de
água para La Paz, não?", pergunta
o repórter branco.
"Estamos aqui para protestar
contra o presidente assassino,
compadre", responde o líder, que
tem nome aymará.
"Mas, e a água? Está garantida,
compadre?", insiste o repórter.
"Não se preocupe, não temos
nada contra o povo de La Paz."
Segundo o último censo, os
brancos formam apenas 15% da
população. Os que se denominam
indígenas representam cerca de
55% -o restante se considera
"mestizo".
Buraco
Além dos protestos das últimas
semanas, a sensação de que a cidade pode ser facilmente sitiada
tem explicações geográficas e históricas. Apesar de ser a capital
mais alta do mundo (3.500 metros
acima do nível do mar), La Paz foi
construída em uma espécie de buraco ("la hoyada"), cercada por
montanhas geladas - muitas ultrapassam os 5.000 metros.
O acesso à cidade -sempre feito montanha abaixo- dá a impressão de um beco sem saída,
além de deixar La Paz dependente
de água e alimentos -produzidos justamente por indígenas do
interior, que por isso não tem
problemas de desabastecimento.
Além disso, mais ou menos como no Rio, os ricos vivem nos lugares mais baixos, enquanto os
pobres ocupam os barrancos íngremes em volta da cidade.
Para o antropólogo Xavier Arbó, o temor é infundado e faz parte da memória coletiva da cidade.
"Entre 1780 e 1781, os aymarás, liderados por Tupac Katari, cercaram La Paz durante seis meses.
Desde então, sempre houve um
temor de uma invasão indígena",
disse à Folha.
Segundo o livro "História da
Bolívia" -cujo autor é o novo
presidente, Carlos Mesa, que originalmente é jornalista e historiador-, durante o cerco muitos espanhóis morreram de fome, mas
os indígenas não conseguiram tomar a cidade por falta de armas.
Capturado, o líder indígena foi
amarrado em cavalos e esquartejado em praça pública, na cidade
de Penhas. A cabeça foi enviada a
La Paz, onde ficou exposta.
Discurso
Esse "medo branco" é muitas
vezes utilizado pelo líder indígena
Felipe Quispe, mais conhecido na
Bolívia como "el Malku" (o condor). Um dos principais líderes
do movimento que levou à renúncia do presidente Gonzalo Sánchez de Lozada, anteontem, ele
também participou, no anos 80,
de um pequeno movimento guerrilheiro de inspiração guevarista
cujo nome era "Tupac Katari".
"Malku sempre quis sitiar La
Paz", disse à Folha um segurança
de um hotel de luxo, que não quis
se identificar. Outro segurança
disse que Malku faz isso para conseguir apoio indígena e intimidar
a elite boliviana. "Quando ele não
está dando entrevistas, fala normalmente, mas, na TV, força o sotaque e faz ameaças", diz.
Apartheid
A boliviana Maria Cruz Lespinasse, 58, que vive nos EUA desde
os oito anos, vê semelhanças com
a África do Sul da época do apartheid: "Comparo sempre a Bolívia
com Soweto, na África do Sul. A
desgraça é que a Bolívia não tem
um Nelson Mandela", disse à Folha, enquanto comprava açúcar,
no nobre bairro de San Jorge, onde moram seus pais.
Maria Cruz, que trabalha em
uma agência de publicidade em
Nova York, disse que um conflito
era iminente. "Eu sabia que isso
ocorreria. Os índios não podem
continuar vivendo assim."
(FM)
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