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Só Chile e Uruguai não tiveram presidentes depostos por manifestações populares desde o início dos anos 90
Grito das ruas dá o tom na América do Sul
CLÓVIS ROSSI
Colunista da Folha
Com a queda de Gonzalo Sánchez de Lozada, a América do Sul
marca mais um triste recorde na
sua já triste história: desde o início dos anos 90, apenas Uruguai e
Chile não tiveram presidentes depostos pelas ruas, ao contrário do
modelo mais civilizado (o das urnas) ou o mais tradicional na sub-região (as armas).
O Peru conseguiu a façanha de
testemunhar ambos os modelos:
o então presidente Alberto Fujimori deu, em 1992, um autogolpe, para o qual é obviamente indispensável o apoio das Forças
Armadas, apenas para ser destronado pelos protestos populares
oito anos e uma reeleição depois.
O Brasil é, a rigor, o precursor
do modelo em que a rua funciona
como combustível essencial para
trocar de presidente: também em
1992, Fernando Collor de Mello se
tornou o primeiro presidente da
tumultuada história latino-americana a sofrer um impeachment.
Ainda que a decisão formal tenha sido do Congresso -e impecável do ponto de vista institucional-, o fato é que, sem as manifestações de rua, dificilmente o
desfecho teria sido esse.
Logo depois, em 1993, o venezuelano Carlos Andrés Pérez se
tornou o segundo presidente a ser
afastado pelo mecanismo do impeachment, depois de ter sobrevivido, no ano anterior, a uma tentativa de golpe à moda antiga (pela força das armas).
A Venezuela, aliás, assim como
o Equador, é um caso de vitória
tardia do golpista inicialmente
frustrado. Quem liderou o golpe
contra Andrés Pérez foi o coronel
Hugo Chávez Frías, que, no entanto, acabaria chegando ao poder, sete anos depois, a bordo, aí
sim, das urnas, não dos tanques.
Nem por isso, assegurou a governança: está sitiado por protestos de uma oposição crescente,
que chegou a depô-lo por 72 horas, no ano passado. Agora mesmo, a oposição tenta encurtar o
mandato de Chávez pelos meios
constitucionais, ou seja, buscando um plebiscito que revogue o
mandato do presidente, que acaba de chegar à metade.
Recorde da Argentina
No Equador, o beneficiário tardio de um golpe frustrado é o
também coronel Lúcio Gutiérrez,
presidente desde 2002. O levante
militar de que Gutiérrez foi um
dos líderes fez parte de uma sucessão interminável de incidentes
institucionais que levaram o
Equador a ter quatro presidentes
em cinco anos (desde 1997).
Na Argentina, o recorde: Fernando de la Rúa foi forçado a fugir de helicóptero da Casa Rosada, a sede governamental, depois
de um monumental "panelaço"
de protesto, em 2001. Foi seguido
por cinco presidentes em poucos
dias, se contados os interinos, entre uma eleição (pelo Congresso)
e outra.
Pode-se argumentar que a Colômbia também poderia ser incluída entre os países sul-americanos que seguem o modelo convencional pelo qual o presidente
sai após cumprir a totalidade do
mandato e é substituído por alguém eleito legitimamente.
É verdade, mas é apenas metade da verdade. Há pelo menos 40
anos, a Colômbia apenas institucionalizou a turbulência política,
sufocada que é pela violência, seja
ela comum, seja política.
É no mínimo discutível a chance de sobrevivência do atual governo sem o apoio (militar, logístico e financeiro) dos EUA, na
forma do "Plano Colômbia" (no
total, US$ 7,5 bilhões).
Restam Uruguai e Chile, que, no
entanto, seguem trajetórias econômicas diferentes, quase opostas: o Chile, desde que a ditadura
de Augusto Pinochet corrigiu o
câmbio, em 1982, cresce continuamente. O Uruguai, ao contrário, está enterrado na mais dura
recessão de sua história.
Menor desigualdade
Como seus governantes sobrevivem? A resposta completa demandaria um estudo sociológico
mais profundo, mas uma primeira tentativa pode ser esta: são os
dois países de menor desigualdade na região (depois que a Argentina sofreu um processo de polarização sem precedentes nos últimos anos).
São também países em que os
partidos tradicionais têm raízes
históricas e sociais talvez mais
profundas.
Mais fácil é apontar a causa básica da "ingovernança" sul-americana: pobreza imensa e desigualdade de renda obscena.
São 220 milhões de pobres, dos
quais 95 milhões são indigentes.
E, na distribuição de renda, a
América Latina é a mais desigual
das regiões, conforme mostram,
ano após ano, todos os levantamentos internacionais.
Consequência: o público busca
nas urnas mais igualdade, escolhendo candidatos que a prometem. Como a promessa nunca é
cumprida, resta o protesto de rua.
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