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Triste África
União Africana precisa impedir que 13 milhões de pessoas passem fome na África subsaariana e que outras 55 milhões morram de Aids na região nos próximos 20 anos
MARILENE FELINTO
EM MOÇAMBIQUE E NA ÁFRICA DO SUL
"Emprego e salário mensal de
Mt 1,5 milhão [cerca de R$ 173 em
metical, moeda de Moçambique]", é isso que o agricultor Paulo Titosse Nhamtumbo, 28, espera da União Africana (UA), a mais
nova versão do sonho de unidade
do continente negro, lançada oficialmente em Durban (África do
Sul) há duas semanas, e que ele
confunde com o próprio governo
de seu país.
Morador da zona rural do distrito da Moamba, a 70 km da capital Maputo, Titosse Nhamtumbo
disse à Folha que quer um emprego para não precisar atravessar
clandestinamente a fronteira para
a África do Sul, em busca de trabalho, e ser devorado pelos leões
do Kruger Park, como aconteceu
com vários amigos seus. "Viver só
da machamba [roça" não é possível", acrescentou, contando que
ganha Mt 750 mil por mês (cerca
de R$ 87).
O Kruger National Park é uma
área de preservação de vida selvagem na África do Sul, que faz
fronteira com Moçambique na
Província de Gaza, no sudoeste
desse país. Nos últimos anos, milhares de moçambicanos cruzaram ilegalmente as fronteiras para
a "terra do rand" (moeda sul-africana), em busca de trabalho nas
minas de ouro e diamante e de
melhores condições de vida.
Um dos desafios que a União
Africana se impõe, a longo prazo,
em seu projeto de integração continental, é exatamente a eliminação de fronteiras entre seus 53
países-membros, um passaporte
e uma moeda comum a todos os
africanos, como acontece na
União Européia.
Enquanto o sonho não vira realidade, e do outro lado da fronteira cobiçada pelo agricultor moçambicano, a África do Sul luta
para enfrentar seus próprios
leões: declínio da indústria de mineração, epidemia de Aids (já são
4,6 milhões de infectados), tensão
racial, taxas de criminalidade das
mais altas e das piores distribuições de renda do mundo.
Quase uma década depois que a
eleição de Nelson Mandela (1994)
enterrou o apartheid (regime de
segregação racial que dava privilégios à minoria branca e negava
direitos aos negros), pouca coisa
mudou de fato entre os 12% de
brancos e os 77% de negros da população sul-africana. O país ocupa a 94ª posição no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da ONU (Organização
das Nações Unidas), numa lista
de 162 países em que o melhor colocado é a Noruega e o pior, Serra
Leoa.
Mas, quando brancos e negros
sul-africanos são considerados
isoladamente, o grupo dos primeiros coloca-se entre as 24 melhores posições do IDH, enquanto
os negros descem para a 128ª. Isso
significa dizer que, enquanto os
brancos sul-africanos vivem como os suíços ou os alemães, os negros experimentam condições de
vida semelhantes aos habitantes
do Congo e do Paquistão.
No Brasil, que ocupa o 69º lugar
no IDH da ONU, os negros vivem
melhor do que os negros sul-africanos -estão em posição correspondente ao 101º lugar do IDH,
enquanto os brancos brasileiros
estão no 46º.
Em junho, num fim de tarde do
rigoroso inverno de Johannesburgo (região norte do país), uma
extensa nuvem de fumaça elevava-se de Soweto, o histórico gueto
negro que fica a cerca de 20 minutos de carro da cidade, denunciando as precárias condições em
que ainda vive a maioria negra da
África do Sul. Naquela espécie de
gigantesca favela de barracos de
zinco e papelão, milhares de famílias fazem fogo para se aquecer.
Unir países que se encontram
em estágios de desenvolvimento
tão diferentes -como
Moçambique (157º lugar no IDH)
e África do
Sul, por
exemplo-,
e tão castigados pela pobreza, é uma
ginástica de
difícil equação para a
União Africana. Pelo menos duas
das tarefas mais prementes no
trajeto da UA são impedir que 13
milhões de pessoas passem fome
já nos próximos meses na África
subsaariana e que outras 55 milhões morram de Aids na região
nos próximos 20 anos.
Especialistas em África são unânimes em avaliar que a atual epidemia de HIV/Aids ameaça de extermínio mais de uma geração de
africanos.
Para o médico psiquiatra brasileiro Willians Valentini Júnior,
consultor da Organização Mundial de Saúde (OMS) em projeto
de política de saúde mental para
Moçambique, o desafio na África
é vencer os preconceitos da cultura contra a medicina científica.
"A cultura do uso do corpo na
África é diferente da nossa. Há
também o
problema da
diversidade
linguística e do
analfabetismo.
É preciso
construir estratégias de
acesso a essas
populações
que ao mesmo
tempo respeitem a cultura e
ajude-os a
vencer os preconceitos", Valentini explicou à Folha em Maputo.
Ele contou que o projeto de cooperação entre o governo de Moçambique e a OMS para implantação de uma política de saúde
mental no país teve que obrigatoriamente incluir no treinamento a
Associação dos Médicos Tradicionais de Moçambique, que reúne 6 mil curandeiros.
"São eles que os doentes primeiro procuram", concluiu. Somente
1% da população moçambicana
tem o português como língua materna, embora 30% consigam se
comunicar nessa língua. Neste
mês o governo decretou que a alfabetização nas escolas públicas
também será feita em outras seis
línguas locais.
Segundo o último levantamento
da Unaids (Programa das Nações
Unidas para a Aids) sobre o número de mortes por Aids no
mundo, 70% dos infectados por
HIV no mundo estão na África
(28,5 milhões de pessoas) e mais
de 90% deles desconhecem sua
condição.
Somente no ano passado, as
mortes somaram 2,2 milhões no
continente. Em toda a América
Latina, o número de mortos por
Aids no mesmo período não passou de 60 mil (dessas, 8.400 no
Brasil).
Na África do Sul, o ex-presidente Nelson Mandela tem aparecido
com frequência em comunicados
de TV exortando a sociedade e os
pais a conversar sobre sexo com
os filhos. No distrito de Moamba,
em Moçambique, ao ser questionado sobre o que sabia de HIV e
Aids, o agricultor Paulo Nhamtumbo, pai de três filhos, cuja mulher é analfabeta e não fala português, disse nunca ter visto uma
camisinha embora já tenha ouvido falar da Aids. "Sou casado, mas
não oficial, porque ainda não tive
dinheiro para pagar o lobolo", explicou. "Lobolo" ou "lobola" é o
nome que se dá ao dote que o noivo deve pagar ao pai da noiva para
obter permissão para o casamento. No caso de Nhamtumbo, o lobolo custa Mt 2 milhões (cerca de
R$ 233).
Na tentativa de romper o isolamento econômico da África, a
União Africana aposta todas as
suas fichas no Nepad (sigla em inglês para Nova Parceria para o
Desenvolvimento da África), projeto criado por líderes políticos
africanos com o objetivo de atrair
investimento estrangeiro em troca do compromisso de manter a
democracia, combater a corrupção, os desmandos políticos, as
guerras e a instabilidade econômica.
Analistas políticos sul-africanos
têm visto com entusiasmo as diferenças entre o Nepad e outros diversos planos de salvação da África que foram por água abaixo:
"maior convergência macroeconômica existente hoje entre os Estados africanos" e o "peer review"
("revisão por pares"), mecanismo
de avaliação que permite aos países-membros do Nepad monitorarem uns aos outros quanto ao
cumprimento das metas estabelecidas pelo acordo, estabelecendo
um sistema de prêmio em créditos para os bem-comportados ou
isolamento de quem não cumprir
sua parte.
Graça Machel, uma das vozes
mais ativas do movimento de reconstrução de Moçambique no
pós-guerra, viúva de Samora Machel (primeiro presidente moçambicano depois da Independência de Portugal, em 1975) e
atual mulher do líder sul-africano
Nelson Mandela, disse em entrevista à Folha (leia na página A13)
em Maputo que falta o Nepad
convencer os próprios africanos
ricos a investirem no continente.
"Se calhar, nós já, neste momento, convencemos de alguma
maneira o G-8 (grupo dos sete
países mais ricos do mundo e
Rússia) de que alguma coisa de
positivo está a acontecer em África, mas não se fez em profundidade o mesmo trabalho em relação
aos potenciais investidores africanos, eles próprios", afirmou Graça Machel.
"Há gente rica neste continente.
Eles têm que aprender que é necessário investir em África e não
nos Estados Unidos e na Europa
só. Portanto, aqueles que têm
mais devem mobilizar recursos
para investir aqui e fazer o Nepad
funcionar."
No último encontro do G-8 no
final de junho, no Canadá, o Nepad foi recebido com mais retórica e menos dinheiro do que se esperava. O plano de ação para a
África proposto pelo grupo ofereceu US$ 6 bilhões ao ano de ajuda,
muito longe dos US$ 64 bilhões
que a África pede para atingir e
sustentar um crescimento de 7%
ao ano.
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