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IMPÉRIO NO DIVÃ
Revelação da filosofia americana diz que país tem dificuldade para compreender quem são seus inimigos
EUA não sabem ter ódio, afirma ensaísta
JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL
Lee Harris, 55, é empresário numa cidadezinha próxima a Atlanta, Estado da Geórgia. Escreveu
contos de ficção científica e ensaios sobre política.
Seu último livro, "Civilization
and Its Enemies, the Next Stage of
History" (civilização e seus inimigos, o próximo estágio da história), lançado neste mês, foi comemorado por publicações conservadoras como a "Policy Review",
do Instituto Hoover, como uma
das revelações da filosofia americana após a Guerra Fria.
Ele diz em seu livro que os EUA
se enfraquecem na medida em
que não conseguem definir o que
vem a ser um inimigo, no caso o
extremismo islâmico. A própria
idéia de inimigo é problemática
na mentalidade do americano.
Para ele, o 11 de Setembro foi
uma oportunidade não plenamente aproveitada de reverter essa visão liberal e generosa.
Eis os principais trechos de sua
entrevista à Folha.
Folha - O sr. acredita que os EUA
não consigam imaginar o que é um
inimigo, como o do 11 de Setembro. Como mudar isso?
Lee Harris - O que tenho escrito é
que, quando se tem uma civilização democrática e liberal, é também preciso que estejamos prontos a defendê-la. Uma civilização
liberal não sai do nada. Ela é construída por meio de um trabalho
longo e árduo. Muitos americanos perderam a noção de o quanto foi preciso trabalhar para chegarmos a uma sociedade livre.
Folha - Como evitar que, ao identificar o verdadeiro inimigo, corra-se o risco de encontrá-lo em cada esquina? As liberdades civis podem
ser machucadas?
Harris - Isso pode ocorrer. O
problema na identificação do inimigo está na possibilidade de ele
ser usado de modo radicalmente
incorreto. O inimigo é um conceito que devemos necessariamente
instituir. Mas precisamos ao mesmo tempo evitar que o inimigo
seja objeto de uma fantasia, que
ele seja onipresente. Isso levaria
ao risco de também destruirmos a
civilização. Ela pode ser destruída
pelos que a defendem mal.
Folha - Um exemplo?
Harris - O precedente mais caricatural e trágico é o de Adolf Hitler, que acreditava estar protegendo a civilização alemã contra o
bolchevismo e acabou atingindo
em cheio valores fundamentais
desta mesma civilização. Hitler foi
um exemplo clássico de reação
desproporcional contra um inimigo cuja dimensão ele e seu establishment imaginaram.
Folha - O atual governo dos EUA
também corre o risco de cair nessa
reação desproporcional?
Harris - É uma questão muito
importante. Um dos problemas
com o 11 de Setembro está no fato
de as pessoas não saberem se algo
parecido voltará a acontecer. A
meu ver não haverá um novo 11
de Setembro, o que coloca no horizonte a hipótese de as reações
serem desproporcionais. Creio,
no entanto, que foi muito difícil
para o presidente George W. Bush
saber se algo igualmente trágico
iria ou não se repetir.
Folha - Mas não há ameaça real às
liberdades e às leis internacionais?
Harris - Não creio que as liberdades civis corram algum risco nos
EUA. Os diagnósticos em sentido
contrário são claramente exagerados. Continuamos a ser um povo extremamente livre, com adversários de Bush vendendo seus
livros como pãezinhos quentes.
Em termos de leis internacionais, não foi possível costurar um
consenso. O 11 de Setembro foi algo inédito. Nada parecido havia
acontecido antes. É preciso levar
em conta esse ineditismo para podermos, no plano internacional,
reagir de modo coordenado. Não
creio, porém, que o governo Bush
tenha feito o necessário para que
essa aliança internacional contra
o imprevisível se costurasse de
modo consistente.
Folha - Alguns liberais, como
Noam Chomsky, dizem que é preciso entender o que pensam os terroristas, porque eles têm posições
muito nítidas sobre o apoio incondicional dos EUA a Israel.
Harris - Nunca neguei que nos
países árabes haja descontentamento pela política americana no
Oriente Médio. Mas o 11 de Setembro significou trazer luto e sofrimento à nação cuja mentalidade eles alegadamente pretendiam
mudar. Ou seja, não foi um ato
político destinado ao convencimento. Foi algo que veio do nada
e que não se repetiu. Chomsky diz
basicamente que, caso fosse um
terrorista, teria feito aquilo que
Bin Laden fez. Mas os terroristas
não têm essa motivação.
Folha - A idéia do inimigo islâmico está ausente das primárias democratas. Será que o 11 de Setembro não "esfriou", deixou de ser
atualidade para virar história?
Harris - Neste momento preciso
há um confronto político, e o adversário está no partido do lado
oposto. De qualquer modo, os republicanos dizem estar numa
guerra prolongada. Eu tenho objeções à idéia de guerra. Numa
guerra há uma posição de simetria entre os lados. Assume-se que
o inimigo se comportará da mesma forma que você. O 11 de Setembro foi singular. Os terroristas
não têm uma racionalidade e uma
capacidade de organização semelhantes às nossas.
Folha - Democratas e republicanos reagiriam da mesma forma para evitar um novo 11 de Setembro?
Harris - Não estou certo. O presidente Clinton, um democrata,
reagiu ao bombardeio de embaixadas americanas na África por
meio de lançamentos de mísseis,
sem se importar quem esses mísseis atingiriam. Ele foi mais irracional que o republicano Bush. Se
os democratas voltarem à Casa
Branca, eles enxergarão a equação
de um modo diferente.
Folha - Em quem o sr. votará para
presidente?
Harris - Ainda não decidi. Eu tradicionalmente voto no candidato
democrata. Mas tenho apoiado
George W. Bush, com base na empatia por sua posição. Se o 11 de
Setembro tivesse sido o início de
uma guerra de verdade, o presidente saberia o que fazer. Mas o
episódio, repito, era inédito e não
voltou a se repetir. E se voltasse a
acontecer? O presidente será responsabilizado, seja ele democrata
ou republicano.
Folha - Ainda quanto à idéia de
inimigo. Durante o macarthismo, a
imagem da democracia americana
era em parte construída com base
no contraste com os comunistas.
Harris - Os americanos não gostam da idéia de terem um inimigo. Quando o presidente Woodrow Wilson entrou na Primeira
Guerra, ele insistia que não estávamos em guerra contra o povo
alemão, mas apenas contra seus
autocráticos dirigentes. Com o
presidente Franklin Roosevelt, na
Segunda Guerra, o raciocínio era
o mesmo. Isso também vale para
o comunismo. Jamais existiu ódio
dos americanos pelo povo russo.
Não sabemos como odiar, o que é
de certo modo um dos segredos
para mantermos uma sociedade
tão diversificada.
Folha - Qual seria a conseqüência
desse traço cultural?
Harris - Devemos reconhecer
que nossa forma de pensar não é
compartilhada por culturas que
nos enxergam como inimigos e
sonham em nos matar pelas costas. Precisamos reconhecer que
não é possível com relação a eles
utilizar comportamentos e raciocínios baseados na eqüidade.
Folha - Foi por isso que após o 11
de Setembro os americanos não
passaram a ver os muçulmanos da
forma com que o senador Joseph
McCarthy via os comunistas nos
anos 50?
Harris - Lembremos do que
ocorreu durante a Segunda Guerra. Japoneses residentes nos Estados Unidos foram confinados.
Franklin Roosevelt concordou. A
Suprema Corte também. Hoje seria inimaginável que algo semelhante ocorresse. Um dos pontos
que abordo em meu livro é o fato
de, nos últimos 30 anos, meu país
ter atravessado uma imensa revolução liberal que trouxe novos padrões de tolerância.
Folha - Não haveria hoje a sensação de que os Estados Unidos se
tornaram arrogantes?
Harris - O americano médio anda meio desconcertado. Se os europeus precisam de forças na Bósnia, tropas norte-americanas são
enviadas. Mas, quando os Estados
Unidos precisam do resto do
mundo, essa ajuda não vem. É como se fôssemos, na cabeça do
americano médio, um posto policial que só pode atuar quando telefonamos para ele. Meus vizinhos de subúrbio de Atlanta seriam capazes de enviar seus filhos
para o lado oposto do mundo
porque acreditam que isso seria
útil para as populações locais.
Folha - Mas seria mera incompreensão essa sucessão tremenda
de atentados contra as forças americanas no Iraque?
Harris - Há grupos que reagirão
com violência e terrorismo apenas para destruir a idéia de legitimidade e tirar proveito do caos
que resultará. É o que o partido
nazista fez, por exemplo, na Alemanha da República de Weimar.
Não creio que o Iraque seja um
exemplo potencial de democracia. Tenho sobre aquele país muitas dúvidas. A democracia pode
fertilizar um terreno para que fanáticos construam seus projetos
contrários à própria democracia.
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