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ARTIGO
Filme de Michael Moore abomina a história
DEMÉTRIO MAGNOLI
ESPECIAL PARA A FOLHA
"Fahrenheit 11 de Setembro", de
Michael Moore, não é o que parece. Ele se apresenta como documentário, mas é um panfleto político com finalidade eleitoral. Aparece para o público como obra
criativa independente, mas é um
instrumento da campanha de
John Kerry à Presidência. Tem sido recepcionado como exposição
dos verdadeiros motivos da invasão do Iraque, mas é uma peça
destinada a ocultar o núcleo da
política externa americana.
A estrutura narrativa do filme
revela pleno domínio da arte da
manipulação.
A tese política
desenrola-se
na parte inicial
e conclui-se na
parte final,
sempre em ritmo de videoclipe. O miolo,
mais lento, é
constituído
por dois fragmentos de documentário. O
primeiro, curto, aborda a
"guerra psicológica" interna
conduzida pela
administração
Bush por meio
da oscilação
dos níveis de
alerta antiterror. O segundo, mais longo, desvenda as conexões entre o recrutamento militar e o desemprego
gerado pela desindustrialização
no Meio-Oeste e capta os impactos da campanha no Iraque sobre
os jovens soldados. Cada um desses trechos é uma oportunidade
desperdiçada de elaboração de
documentários geniais. Mas, do
ponto de vista de Moore, não há
desperdício, pois eles desempenham a função ideológica de conferir credibilidade documental ao
restante da narrativa.
O resto é lixo, construído com a
tesoura que seleciona, a cola que
recontextualiza e a determinação
de prender os fatos à camisa de
força da tese política. O método,
tão antigo como os filmes de propaganda de Stálin ou Hitler, beneficia-se das técnicas contemporâneas de edição.
A meta do filme é
substituir a história
pela trama da
conspiração. Toda a
operação narrativa
monta o cenário
para sugerir que os
atentados do 11 de
Setembro
decorreram de um
complô entre Osama
bin Laden, os
"príncipes do
petróleo" e o
próprio Bush
Mas o efeito de sedução tem
suas raízes nos fragmentos de documentário do miolo.
No documentário, os fatos falam, exprimindo idéias diversas e
dissonantes. Na propaganda, não
há alteridade: os fatos são amordaçados e escravizados ao
discurso unívoco do narrador. A narrativa de Moore
elabora uma
versão que esvazia a política
externa americana de uma
visão de mundo. No lugar
disso, o que
existe é a corrupção da família Bush, as
negociatas entre essa camarilha e o complexo industrial-militar, as
suas conexões
com os "príncipes do petróleo" e a teia de interesses que une o presidente americano à família real saudita e ao
chefe terrorista Osama bin Laden.
Moore confia nas lacunas de informação do grande público. Sua
câmera mostra cenas dos campos
de treinamento de Osama bin Laden financiados pela CIA no Afeganistão dos anos 80, mas omite a
posterior declaração de guerra do
chefe terrorista a Washington.
A narrativa insiste nos laços de
negócios entre a família de Bin Laden e a monarquia saudita, mas se
desvia da ruptura histórica entre
o chefe terrorista e a Casa de Saud,
que detonou a atual guerra entre o
fundamentalismo e o regime saudita.
O filme abomina a história. A
sua meta é substituí-la pela trama
da conspiração. Toda a operação
narrativa monta o cenário para
sugerir que os atentados do 11 de
Setembro decorreram de um
complô entre Osama bin Laden,
os "príncipes do petróleo" e o
próprio Bush. Essa tese desvairada não é jamais exposta: emana,
sob a forma de silenciosa insinuação, da lógica da montagem dos
eventos.
Há uma nítida finalidade política no filme, muito maior que a declarada intenção de interferir na
eleição presidencial. Trata-se de
reinventar o passado recente, de
modo a ajustá-lo à linha de política externa defendida por Kerry.
Os democratas proclamam aos
quatro ventos a sua adesão a alguns princípios centrais da Doutrina Bush, como a noção da
"guerra ao terror" e o pretenso direito à "guerra preventiva". Por
isso, a crítica à administração
Bush deve ocultar o eixo da sua
política internacional, que é a
Doutrina Bush. Eis a finalidade do
filme de Moore. Não por acaso, a
câmera da manipulação capta as
cenas dos civis mortos no Iraque,
mas esconde as vítimas inocentes
dos bombardeios no Afeganistão,
a guerra que os democratas acusam Bush de não travar com suficiente decisão.
As corporações de Hollywood
recusaram o filme de Moore, em
nome das suas relações com a Casa Branca. Erraram: além de gerar
fortunas, o documentário é autoritário na forma e conservador no
conteúdo.
Demétrio Magnoli, 45, doutor em geografia humana pela USP, é editor do periódico "Mundo - Geografia e Política Internacional" e pesquisador do Nadd-USP
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