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FRANÇA
Camille Cabral, conselheira municipal em Paris, se diz "coquetel de mitos: madre Teresa, Evita, La Passionária e Maria Bonita"
Transexual brasileira vira estrela política
ALCINO LEITE NETO
DE PARIS
O agitado protesto das prostitutas diante do Senado francês, em
Paris, no último mês, fez surgir
uma estrela entre suas manifestantes. Erguendo a bandeira da
França como um emblema da "liberdade, igualdade e fraternidade", Camille Cabral, que não é
prostituta nem é apenas francesa
e nem é somente mulher, foi a
personalidade mais procurada,
filmada e fotografada.
Camille Cabral é médica. Nasceu no Brasil. E é transexual. Em
2001, tornou-se a primeira transexual eleita por voto popular na
França para um cargo público, o
de conselheira municipal de Paris
pelo 16º "arrondissement" (bairro). É uma das principais líderes
de grupos minoritários do país.
Ela é fundadora e presidente do
Pastt (Prevenção, Ação, Saúde,
Trabalho para os Transgêneros),
associação que dá assistência às
transexuais -as mesmas que a
rodeavam na manifestação como
se ela fosse uma pitonisa ou uma
líder revolucionária.
"Sou um coquetel de mitos: um
pouco de madre Tereza de Calcutá, outro tanto de Evita Perón,
mais um cadinho de La Passionária e muito de Maria Bonita", afirma a nordestina Camille em seu
escritório no Pastt, em Paris, vestida de tailleur verde-claro que
deixa entrever os joelhos e um xale com as cores do arco-íris, o símbolo da tolerância pelas diferenças sexuais.
"Pergunte-me o que quiser, menos três coisas: meu nome de nascimento, minha idade e se fiz ou
não operação de sexo", pede ela à
Folha. Ela prefere dizer que tem
"40 e poucos anos". O prenome
Camille ela escolheu quando adotou a nacionalidade francesa, há
dez anos. "Queria um nome muito francês, mas refinado", diz.
O sobrenome Cabral é o mesmo
de batismo e de sua família nordestina, formada por fazendeiros
e políticos. "Não vou te dizer meu
nome porque esse é um passado
que eu quero apagar. E não pretendo prejudicar meus parentes
políticos. As pessoas podem usar
a minha história para fazer pressão moralista sobre eles. Conheço
a mentalidade do Nordeste."
Seus parentes foram ou são vereadores, prefeitos e presidentes
de organismos regionais. Um de
seus irmãos é assessor do governador eleito da Paraíba, Cássio
Cunha Lima (PSDB). Camille não
revela seu nome, mas conta o apelido na adolescência: Martelo.
Ela nasceu numa fazenda, na
fronteira de Pernambuco e da Paraíba, segundo filho de uma família de oito irmãos. Em Campina
Grande (PB), seu pai a levava para
assistir a filmes italianos. "Adorava Visconti", recorda. Nos anos
70, passou no vestibular das Ciências Médicas, faculdade privada
de Recife. Com o diploma na
mão, foi para São Paulo, fazer estágio no Hospital das Clínicas.
Na capital paulista, ela decidiu
pela primeira vez vestir-se publicamente de mulher. "Depois do
trabalho, eu dava umas escovadas
no cabelo, botava uma maquiagem preta, um rímel, um batonzinho e me jogava na noite de São
Paulo." Também começou a tomar hormônios femininos, que
ela receitava para si mesma. "Mas
só pouquinho. Eu não podia ter
peitões, pois guardava sempre o
papel social de homem. Tinha de
ganhar minha vida. Eu era doutor, e não doutora."
O jogo duplo durou até sua vinda para a França, em 1980, onde
veio fazer um estágio em dermatologia, no que acabou se especializando. Trabalhava no hospital
Saint Louis e já não escondia o jeito feminino. "Comecei a me impor como mulher no hospital. Eu
deixava dúvidas. Uns me chamavam de "madame", outros de
"monsieur"."
A transformação veio aos poucos: uma blusa mais decotada, um
pouco mais de maquiagem, as sobrancelhas mais finas. "Até que
chega um dia, meu filho, em que
todo mundo está sabendo e você
não precisa mais tapar o sol com a
peneira, mesmo porque a peneira
já está cheia de buracos."
Camille fez cirurgia para raspar
bastante o osso da testa -"muito
proeminente e masculino". Colocou duas pequenas próteses na face -"próteses sólidas, e não de
injeção". E fez depilação definitiva do corpo e do rosto -"para tirar toda sombra de barba ou de
bigode".
E a operação de sexo? "É uma
questão muito íntima. Não vou
responder", diz. "A identidade de
gênero não está ligada à mudança
de sexo. Nosso fenômeno não é
genital, mas de sensibilidade, de
atitude. Não existe nenhum parâmetro que exija que nós tenhamos de fazer operações genitais
para podermos ter nossos direitos
reconhecidos. Por isso prefiro
usar o neologismo "transgênera" e
não a palavra "transexual". Eu sou
uma mulher transgênera."
Transfigurada, Camille foi um
impacto para os amigos. "Eles ficaram extasiados." Ficou um longo tempo sem ver sua família.
Quando voltou a visitá-los no
Brasil, desembarcava em São
Paulo como mulher, mas no Nordeste como homem. Seus pais jamais a viram com um tailleur. "Eu
chegava à minha cidade vestida
de boné, com uma jaqueta bem
masculina, os peitos espremidos
por trás de umas camisas bufantes. "Ficava tão esquisita que não
parecia um homem: parecia um
sapatão." Sapatão é uma gíria para designar lésbica.
Camille diz que escondeu sua
transexualidade dos pais não porque tivesse medo, mas por respeito a eles. Eles já tinham mais de 60
anos. "Creio que até me aceitariam, se fosse morar com eles numa ilha, mas naquela sociedade
em que viviam eu seria um problema imerecido. Eu me camuflei
para eles, mas por amor". Os pais
de Camille já morreram. Com o
tempo, os seus irmãos deixaram
de estranhar que o menino Martelo tivesse virado uma madame
franco-brasileira.
Talvez mais francesa que brasileira. Na França, Camille casou-se
duas vezes. Na primeira, de papel
passado e com divórcio no final.
Ficou viúva de seu segundo marido. "Mas sou uma viúva alegre,
não fico fazendo crochê em casa."
Por sua expertise em doenças
sexualmente transmissíveis, sua
condição de imigrante, de "transgênera" e por sua liderança sobre
uma minoria sexual, Camille foi
convidada a atuar no Partido Verde. Acabou se lançando como
candidata a conselheira municipal em 2001, para um mandato de
cinco anos. Fez campanha e tudo.
Ia aos mercados de Paris, montava sua banca política, distribuía
panfletos e soltava a voz: "Votez
Vert, votez ecologistes, votez Camille Cabral". Foi eleita. "Eu hoje
sou uma Marianne Bonita", diz
ela, misturando a mulher-símbolo da República francesa com o
mito do cangaço.
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