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ORIENTE MÉDIO
Em meio a cadáveres de crianças, cuja contabilidade é incerta, cada lado prefere conviver com sua história
Ataques em Gaza criam guerra de versões
JAMES BENNET
DO ""NEW YORK TIMES", NO CAMPO DE
REFUGIADOS DE RAFAH, FAIXA DE GAZA
Instalado no meio de campos de
cravos, o refrigerador do campo
de Rafah, que normalmente contém flores ou legumes que serão
vendidos a uma empresa israelense, foi emprestado aos mortos.
Foi esse refrigerador que o médico palestino procurou na manhã de quarta-feira, quando o
mais recente ataque do Exército
israelense deflagrou uma luta paralela para definir a realidade. Havia, de fato, crianças entre os mortos, como afirmaram os palestinos? Quantas? Elas morreram por
disparos de atiradores israelenses
ou pelos explosivos de terroristas?
O médico, Ahmed Abu Nikera,
já estava farto dessas perguntas.
Na sala úmida e escura, ele desenrolou um pano ensangüentado
envolvendo um cadáver como se
fosse uma múmia. "É uma criança", disse, mostrando o rosto pálido de Ibrahim al Qun, 14. "Foi por
aqui que a bala saiu." Ele apontou
um buraco preto, do tamanho de
uma bola de beisebol, onde estivera o olho esquerdo do menino.
Outra coisa também foi anotada
na fria contabilidade diária desse
conflito: durante os combates da
noite de terça-feira, o médico Ali
Moussa, do hospital Al Najar, disse que havia sete menores de 18
anos entre os mortos. Mas uma
lista de nomes e idades compilada
pelos hospitais palestinos na manhã de quarta indicava quatro.
Ao lado do caos dos tiros, das
granadas disparadas de tanques,
das bombas e das máquinas blindadas de terraplanagem que fazem parte do cotidiano deste lugar, uma densa neblina de guerra
recobre tudo. Também há uma
guerra de neblina, de versões da
realidade sempre conflitantes.
Mas também há uma realidade
objetiva perdida entre as versões.
Há uma criança morta, um buraco de bala. Quantas crianças mortas são demais é uma pergunta repetida por palestinos e israelenses
sem sinal de resposta.
Algumas horas após a visita ao
refrigerador, a vida por aqui deu
outra guinada cruel e confusa. Na
quarta-feira à tarde, um tanque e
um helicóptero israelenses abriram fogo na hora em que manifestantes se aproximavam de um
bairro na periferia de Rafah. Homens em agonia carregavam garotinhos que sangravam por ferimentos causados por estilhaços
de granadas. Foi o caos total, o pânico, visão vertiginosa do inferno.
Mortos e feridos cobriam os leitos e o chão do hospital Al Najar.
As TVs citavam mais de 20 mortos. Mas, com caneta na mão e caderno a postos, fomos obrigados
a indagar: onde estão os corpos?
As autoridades palestinas falaram em ao menos dez mortos.
Moussa afirmou que não podia
"garantir", dizendo que algumas
famílias levaram seus mortos para serem enterrados antes de os
corpos chegarem ao hospital.
O governo israelense expressou
seu pesar pela morte de civis.
Qualificou o incidente como
"muito grave". Disse que ele pode
ter sido causado por disparos feitos por tanques e por explosivos
deixados por terroristas. Os disparos feitos pelo helicóptero e os
tanques foram legítimos, disse o
governo, porque havia atiradores
na multidão de manifestantes.
Muitas testemunhas afirmaram
que não havia atiradores. Segundo o Exército, a questão está sendo investigada. Cada lado aproveita o que vê como sendo o hábito do outro lado de difundir falsidades para lançar dúvidas sobre
as alegações relativas às mortes.
Na noite de terça-feira, palestinos afirmaram que atiradores israelenses tinham matado duas
outras crianças que retiravam
roupa do varal: Asma al Moghair,
16, e seu irmão Ahmad, 13.
Mas um oficial israelense que
chefiou a operação disse que um
inquérito inicial sobre as mortes
foi inconclusivo. Ele observou
que os palestinos deixaram muitas bombas na esperança de matar soldados. "Não excluímos a
possibilidade de esses jovens terem sido mortos pelas bombas",
disse ele. "Posso afirmar inequivocamente que ninguém de nossa
unidade pôs esse garoto ou essa
moça sob a mira para matá-los."
O cadáver de Asma estava no
necrotério do hospital Al Najar,
que, tendo capacidade para apenas seis corpos, logo ficara lotado.
Nikera desamarrou uma corda
que prendia o pano em volta do
pescoço da garota e puxou o cabelo de Asma para trás, revelando
sobre sua orelha esquerda um buraco do tamanho de uma moeda.
Era o furo por onde o projétil saíra, disse. Ela não apresentava ferimentos por estilhaços de bomba
ou granada. "Isto é o que os israelenses chamam de acidente."
O corpo de Ahmad estava no refrigerador de flores. Ele apresentava um furo semelhante na cabeça, acima da orelha esquerda, e
tampouco ostentava ferimentos
causados por estilhaços.
Muitas dessas versões jamais serão conciliadas. Cada lado prefere
conviver com sua versão dos fatos. A violência segue, e fazer sua
contabilidade pode parecer um
esforço sem sentido.
Quando o tumulto se aquietou
no hospital Al Najar, um médico
exausto se deixou cair sobre uma
cadeira, afrouxando a gravata
azul em torno do pescoço. "Não
faz diferença", disse ele, referindo-se aos mortos. "Para todos
nós, a vida é igual à morte." Nos
corredores do hospital, funcionários com baldes de água lavavam
o sangue endurecido sobre os ladrilhos de pedregulho esmagado.
Tradução de Clara Allain
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