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SEXUALIDADE
David Reimer, que se matou em abril, fez de seu drama bandeira contra o realinhamento sexual de crianças
Homem criado como mulher vira herói
ROBERTA RAMPTON
DA REUTERS, EM WINNIPEG, CANADÁ
Um canadense criado como
menina após sofrer uma circuncisão malfeita está sendo tratado
como um herói cuja tragédia pode poupar outras crianças de cirurgias de manipulação de sexo.
Ele cometeu suicídio neste mês,
aos 38 anos, depois de ter vivido
primeiro como Bruce, depois como Brenda e em seguida como
David, suportando sofrimentos
em série -o último foi ver a economia de toda sua vida evaporar
no investimento de um amigo.
David Reimer nasceu menino,
mas foi transformado em menina
aos dois anos, após seu pênis ter
sido destruído em uma circuncisão feita por uma pessoa inexperiente usando um cauterizador.
Num primeiro momento, a vida
de Reimer foi descrita como história bem-sucedida, sendo objeto
do primeiro estudo documentado
de realinhamento sexual de uma
criança cujos sexo, hormônios e
cromossomos eram todos masculinos. Durante mais de duas décadas ele foi descrito em textos médicos como prova viva de que o
gênero pode ser determinado pela maneira como uma criança é
criada -ou seja, a vitória da criação sobre a natureza.
Mas Reimer chocou o mundo
em 1997, ao levar a público sua
jornada dolorosa para transformar-se novamente no homem
que sempre sentira que devia ser.
"Ele jogou por terra ao menos
parte daqueles mitos segundo os
quais basta colocar alguém num
quarto azul ou cor-de-rosa para
que se torne menino ou menina",
disse Milton Diamond, pesquisador sexual da Universidade do
Havaí que foi o primeiro a documentar o experimento fracassado
em detalhes. "Ele foi um herói.
Agüentou tanta coisa e conseguiu
sobreviver. Pelo menos eu pensava que estivesse conseguindo."
Depois de o pesquisador sexual
John Money, do Hospital Johns
Hopkins (Baltimore), publicar
em 1972 os resultados de seu trabalho com Reimer, a cirurgia e o
condicionamento se tornaram o
tratamento padrão para crianças
cujos órgãos genitais tinham sido
danificados ou apresentavam ambigüidades causadas por condições hormonais ou de cromossomos. Ativistas acreditam que até
2% das crianças nasçam apresentando características reprodutivas de ambos os sexos, condição
que dificulta ou impossibilita a
determinação de seu sexo.
Reimer passou 14 anos vivendo
como menina, com o nome de
Brenda, mas se revoltava constantemente por sentir que não era do
sexo feminino. Em entrevista
concedida à Reuters em 2000, disse que se via como assexuado.
Quando tinha 15 anos e seus
pais lhe contaram a verdade, ele
começou a vestir-se como rapaz.
Nos anos subseqüentes, submeteu-se a cirurgias para reconstruir
seu pênis e retirar os seios que desenvolvera com a ajuda de hormônios. Além disso, mudou seu
nome para David.
"Meu caso lembrava o do sujeito que tinha tudo contra ele, alguém enfrentando um gigante de
três metros de altura", disse Reimer a John Colapinto no livro de
2000 "As Nature Made Him: The
Boy Who Was Raised as a Girl"
(como a natureza o fez -o menino que foi criado como menina).
Durante anos, Reimer levou em
Winnipeg uma vida tranqüila,
centrada em sua família. Ele se casou e, embora não pudesse ter filhos próprios, adotou os três filhos de sua mulher. Mas ficou estarrecido ao descobrir que outras
crianças tinham passado por um
trauma semelhante, em parte devido ao suposto êxito de seu caso.
"Quando o conheci, Reimer não
se dava conta do que ele representava no mundo científico e médico", contou Diamond. "Ele ficou
pasmo. Disse: "Precisamos fazer
alguma coisa para pôr fim nisso"."
Reimer passou a relatar sua história a jornalistas e pesquisadores, tentando salvar outras pessoas da mesa de cirurgia. Diamond e um colega publicaram o
primeiro relato do fracasso do
tratamento de Reimer em um periódico médico em 1997. Outros
artigos vieram depois, incluindo
um de Colapinto publicado na revista "Rolling Stone".
"Essa passou a ser sua missão na
vida: esclarecer o mundo para que
os médicos se abstivessem de usar
a faca, pelo menos até a criança ter
idade suficiente para tomar suas
próprias decisões", contou a mãe
de Reimer, Janet, em entrevista à
rede de televisão CBS.
A família e os amigos de Reimer
sabiam que ele estava deprimido
desde o suicídio de seu irmão gêmeo idêntico, dois anos atrás. Recentemente, ele se separara e perdera suas economias num esquema de investimento fracassado.
Mas, na última vez que Reimer
falou com Diamond, poucos dias
antes de se matar com um tiro, na
semana passada, ele citou apenas
recordações breves de sua infância. "A depressão se devia mais a
coisas antigas do que às mais recentes. As coisas recentes foram
apenas a gota d'água que fez o copo transbordar", disse Diamond.
Hoje, segundo Diamond, os
médicos abordam a possibilidade
de cirurgia com mais cautela. Mas
o pesquisador quer a suspensão
total das operações desse tipo, pedido repetido por ativistas. "Minha posição é: "Criem as pessoas
como meninos ou meninas, como
vocês acharem melhor, mas mantenham o maldito bisturi longe"."
De acordo com Melvin Grumbach, endocrinologista pediátrico
da Universidade da Califórnia em
San Francisco, com o passar dos
anos os especialistas foram se tornando mais hábeis no diagnóstico
e no tratamento de crianças de gênero ambíguo. "Hoje somos muito menos dogmáticos do que antes e temos muito mais consciência das limitações da tentativa de
prever um fator determinista na
identidade sexual", disse.
Grumbach acha que a sexualidade se tornou um tabu menor do
que no passado, o que facilita a
discussão de opções pelos especialistas e as famílias envolvidas.
Em alguns casos, disse ele, as cirurgias de determinação sexual
apresentam resultados melhores
quando realizadas na primeira infância. "Procuramos fazer o melhor possível por essas crianças,
mas é complicado", concluiu.
Tradução de Clara Allain
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