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Diário de bordo
Na estrada
Milho, não eleições, domina América profunda, em rota de 1.500 km de alienação
Sérgio Dávila, entre Denver (Colorado) e St. Paul (Minnesota)
É
quase outro país, um
lugar mágico em que não há
uma disputa para presidente,
mas para ver quem fala mais de
milho.
A Folha percorreu de carro
os 1.550 km que separam Denver, no Colorado, onde Barack
Obama será consagrado o candidato do Partido Democrata
nesta semana, de St. Paul, em
Minnesota, onde John McCain
aceitará a indicação do Partido
Republicano na primeira semana de setembro.
A paisagem entre os dois locais é monotemática: milho.
Milharal. Usinas de álcool de
milho. Turbinas movidas a
vento que ajudam na manutenção de fazendas de milho. Políticos movidos a milho, do subsídio dado pelo governo norte-americano ao combustível feito da planta. Água, também,
mas a necessária na irrigação
do plantio do milho.
Quem anda pela estrada I-80
de oeste a leste e, a partir de
Des Moines, em Iowa, na I-35
de sul a norte -duas das principais veias que cortam o chamado Cinturão do Milho, de
onde sai metade da produção
do grão e quase a totalidade do
etanol do país inteiro-, vai encontrar muito pouca referência
às convenções e às eleições de 4
de novembro.
No trajeto todo, duas placas
podem ser consideradas mais
ou menos engajadas. Uma dizia
que cachorros aprendem, políticos não, numa fazenda de
Minnesota; outra, em Nebraska, pedia que a sodomia fosse
declarada prática ilegal.
É quase como se os quatro
Estados em questão -Nebraska e Iowa, além das sedes das
convenções-, com seu total de
31 votos no Colégio Eleitoral,
ou mais de 10% dos 270 necessários para que um dos candidatos vença, não importassem.
Mas os candidatos sabem
que não é assim, ainda mais numa disputa tão apertada.
Iowa já foi visitado dezenas
de vezes pelos dois só neste
ano, a mais recente na sexta retrasada por McCain, que foi à
tradicional Feira Anual. Obama se declarou candidato do
partido num comício em
St.Paul, em junho. Colorado está sendo disputado ponto a
ponto. O democrata abriu dois
escritórios em Nebraska, que
não vota no partido desde 1964.
1
A ÁGUA
O trajeto começa em Denver,
em que um assunto tira os locais do sério. E não é o esquema
de segurança com que a polícia
promete receber os manifestantes durante os quatro dias
da Convenção Democrata, nem
o centro de triagem para o qual
levará os presos, já apelidado de
Guantánamo.
Os cinco milhões de coloradenses querem saber o que vai
acontecer com seu produto
mais precioso, a água. O Estado,
cujo lema extra-oficial é "uísque é para beber, água é para
brigar", é um dos signatários do
Acordo de 1922 do Rio Colorado, que dividiu em partes iguais
a produção da bacia desse rio
entre sete Estados.
Acontece que, nos últimos
anos, Estados-pêndulo que viram sua população explodir,
como Nevada e Novo México,
querem rever o acordo, assim
como o Arizona de John
McCain. Ele esteve por aqui há
duas semanas e disse que o tratado "tem de ser renegociado".
Depois disso, o senador pode
se despedir dos votos daqui. É o
que me diz Jody Berger, da
ONG progressista Progress
Now. "O fato de ele dizer isso
demonstra a falta de cuidado de
McCain para com a população
local." Obama ainda não se pronunciou sobre o assunto. Nas
pesquisas agregadas pelo site
Real Clear Politics, os dois estão empatados no Estado, com
45,8% para o democrata e
45,3% para o republicano.
- Em quem você vai votar?
- Só vou decidir depois das
convenções. Quero ver que
tipo de confusão vão
aprontar na cidade, como os
políticos locais vão reagir e
acho que preciso conhecer
mais os candidatos.
(Denise Mease, 49, dona de sete
restaurantes em Denver)
2
O MILHO
Ao sair do Colorado e entrar
em Nebraska pela cidade de
Ogallala, conhecida por ser
uma das paradas do pioneiro
serviço postal Pony Express, o
FedEx do Velho Oeste, o viajante deve deixar para trás não
suas esperanças, mas a possibilidade de ver outra coisa que
não milharal.
O Estado é o segundo maior
produtor de álcool dos EUA,
me informa a associação local.
É também um dos redutos republicanos mais sólidos do
país. Com exceção de 1964,
quando votou no democrata
Lyndon Johnson, Nebraska é
republicano desde 1940. Mas
Barack Obama pretende repetir aqui a mesma técnica que o
fez vencedor nas primárias.
É que o Estado é um dos dois
dos EUA em que os votos do
Colégio Eleitoral não vão todos
para o vencedor, mas são divididos proporcionalmente.
Obama está de olho nos distritos em torno de Omaha, a
maior cidade, em que aparece
bem em pesquisas recentes.
Está amparado pelo omahano mais ilustre, Warren Buffett, que vem a ser também o
homem mais rico do mundo,
segundo a revista "Forbes",
com US$ 62 bilhões. Fica aqui a
sede de sua empresa, Berkshire
Hathaway, com faturamento
mundial de US$ 260 bilhões e
mais de 60 subsidiárias.
O empresário de 76 anos ainda não declarou apoio oficial a
Obama, mas realiza eventos de
arrecadação de fundos para sua
campanha. Cheguei a Omaha
cinco dias depois de um jantar
dado por Buffett para arrancar
dinheiro da elite local. Foi concorridíssimo.
A mesma animação não pode
ser sentida nas camadas mais
baixas. Naquele dia, uma senhora oferecia um chá da tarde
para seus companheiros obamistas. Quando fui me registrar, era o terceiro. À noite, no
bar de um dos principais hotéis,
jovens vestidos de camisetas
pretas falavam alto. "Eu fiquei a
dois metros dele!", gritava um,
entusiasmado. Aos poucos,
vencendo a pouca iluminação,
fui enxergando melhor.
Nas camisetas, nada de slogans de campanha. Uma dizia
"sente sua bunda em algo com
classe" e trazia o logo da Harley
Davidson. Um garçom me informou: a banda heavy metal
britânica Def Leppard havia
acabado de se apresentar na cidade, junto ao roqueiro Billy
Idol. O "ele" a que se referia o
rapaz era o Idol britânico, não o
ídolo político.
No dia seguinte, numa palestra na universidade estadual local, o senador democrata Ben
Nelson voltaria ao assunto que
tira o sono do Estado hoje: álcool. "Eu admito que o feito a
partir de milho não é perfeito,
mas ele tem sido culpado por
praticamente todos os problemas do mundo. Vão culpá-lo de
causar o que mais? Resfriados
de verão? Vírus de computador? Penteados ruins?"
Foi por conta de Nelson e para não alienar a poderosa bancada do milho que Obama votou a favor da manutenção tanto do subsídio ao produtor local
quanto da tarifa cobrada do
produto brasileiro. McCain foi
mais corajoso e declarou num
evento em Iowa que era contra
a taxação do álcool do Brasil.
Nelson diria depois: a tarifa só
cairá "sobre meu cadáver".
- Em quem você vai votar?
- Não acho certo responder
a perguntas pessoais no
trabalho. De qualquer
maneira, não me sinto
confortável falando sobre
minha opção política.
(Funcionária que se recusa a dizer o
nome no Buffalo Bill Ranch, em North
Platte)
3
O VENTO
Já na I-35 e já em Iowa, rumo
ao norte, o susto. Imensas hélices quixotescas começam a
brotar do meio dos milharais.
São as turbinas movidas a vento, forma de energia alternativa
que começa a ganhar força no
Estado que é o maior produtor
de álcool do país.
Nos últimos cinco anos, o número de fazendas e empresas
em geral que usam esse tipo de
energia decuplicou, me diz Bill
Haman, gerente de programas
industriais do Iowa Energy
Center, que usa incentivos fiscais estaduais para financiar os
projetos. "Turbinas de vento
estão virando commodities de
Iowa tão valiosas quanto o milho e a soja", afirma ele.
Pode ser. Mas, com mais de
dois terços da viagem vencidos
e centenas de postos pelo caminho, um traço comum chama a
atenção: até agora, nenhum deles oferece álcool ao consumidor. Há gasolina de três tipos,
diesel e até biodiesel, mas não
álcool. Em Clear Lake, aparece
o primeiro a oferecer o E-85,
mistura de 85% do biocombustível com 15% de gasolina.
Encontrá-lo é tirar a sorte
grande. Há 170 mil pontos de
venda de gasolina nos EUA;
apenas 1.500 oferecem álcool.
- Em quem você vai votar?
- Já sabia que ia votar no
candidato republicano, não
importava quem fosse.
Como foi decidido que é o
John Mccain, é nele. Não
gosto das políticas
domésticas dos democratas.
Eles aumentam os impostos.
(Brian Bownes, 54, diretor executivo do
Museu John Wayne, na cidade natal do ator,
em De Soto)
4
ESPERANÇA,
MINNESOTA
St. Paul, ponto final da viagem, mostra timidamente os
preparativos para a convenção
republicana. Talvez porque o
aparato policial não seja tão
evidente, já que poucos manifestantes são esperados. Chama a atenção a romaria ao banheiro masculino do aeroporto
internacional. Muitos querem
conhecer onde o senador republicano Larry Craig, de Idaho,
foi preso, acusado de "conduta
libidinosa" diante de um policial à paisana. Ele nega.
Poucos quilômetros antes,
porém, duas cidades fazem um
comentário involuntário. A primeira é Hope, "esperança", que
tem no nome o slogan de Obama. É seguida por Clinton
Falls, as Quedas de Clinton, no
sentido de cachoeira. Aqui, a
disputa foi apertada nas primárias. O senador teve oito votos;
Hillary teve seis.
- Em quem você vai votar?
- Obama. Sempre voto na
pessoa que vai fazer o melhor
trabalho para o país.
(Lori Nelson, 48, dona do café Straight
River, em Hope)
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